Friday, July 2, 2010

VELHAS E NOVAS ANTROPOFAGIAS



"A Franga - Que horrendos patifes! Estou prestes a desfalecer. Como? Furarem-me os olhos! Cortarem-me o pescoço! Assarem-me e comerem-me! Esses celerados não têm um pingo de remorsos?

O Frango - Não, minha amiga; os dois abades de que te falei diziam que os homens nunca têm remorsos das coisas que têm o hábito de fazer.

A Franga - A detestável corja! Aposto que quando nos devoram ainda se põem a rir e a contar ditos anedóticos, como se nada fosse.

O Frango - Adivinhaste; mas fica a saber, se te serve de consolação, que essas bestas bípedes como nós, e que estão verdadeiramente abaixo de nós visto que não têm penas, fizeram muito frequentemente o mesmo com os seus semelhantes. Ouvi dizer aos meus dois abades que nenhum imperador cristão ou grego se coibiu de furar os dois olhos aos primos e aos irmãos; que, mesmo no país em que vivemos, um houve, chamado Débonnaire, que fez arrancar os olhos ao seu sobrinho Bernard. Mas quanto a assar os da sua espécie, nada foi mais comum entre os homens. Os dois abades diziam que mais de vinte mil tinham sido assados por alimentarem certas opiniões, que seriam difíceis de explicar para um frango e que não importam por aí além.

A Franga - Seria, aparentemente, para os comer que os assavam.

O Frango - Não ouso assegurá-lo, mas lembro-me bem de ter ouvido claramente que há muitos países, entre os quais o dos judeus, onde os homens são alguma vezes comidos uns pelos outros.

A Franga - É adequado a uma espécie tão perversa que se devore a si mesma e seria justo que a terra fosse purgada desta raça. Mas eu que sou pacífica, eu que nunca fiz mal, eu que dei mesmo de comer a esses monstros ao dar-lhes os meus ovos, serei mutilada, cegada, degolada e assada! Tratam-nos assim no resto do mundo?"

Voltaire, Diálogo do Frango e da Franga, trad. Susana Pires, s. l.: Arbor Litterae, 2010, pp. 11-12

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