Thursday, December 1, 2011

EM MEMÓRIA DE CHRISTA WOLF



"Nessa altura eu já cá não estarei. Nem Hélio, o deus do Sol, nem a minha querida deusa-Lua darão por isso. Com dificuldade, lenta mas definitivamente, libertei-me da crença de que os nossos destinos humanos estão ligados com o curso dos astros. E de que além vivem almas semelhantes às nossas, que influenciaram as nossas existências, mesmo que seja só para enlearem e confundirem os fios que as sustentam. Acamante, o primeiro astrólogo do rei, pensa como eu, sei-o desde uma troca de olhares durante um rito sacrificial. Ambos disfarçamos, mas por razões diferentes e de modos diversos. Ele apresenta-se como o mais zeloso entre os servidores dos deuses, por meio de uma indiferença abismal em relação a toda a gente; eu, evitando quanto posso os rituais, mas calando-me quando tenho de participar neles, por compaixão connosco, mortais que, quando despedimos os deuses, temos de atravessar uma zona infernal a que nem todos escapam. Acamante pensa que me conhece, mas a sua autocegueira impede-o de conhecer seja quem for, e muito menos a si próprio. Agora quer regalar-se com o meu medo. Tenho de refrear o meu medo. Não posso deixar de pensar."
Christa Wolf, Medeia.Vozes, trad. João Barrento, Lisboa: Cotovia, 1996, pp.  162-163.

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