Friday, December 16, 2011

PORTA COELI


"Abruptamente, Zooey levou as mãos à cara já bastante suada, deixou-as ficar lá durante alguns instantes e depois retirou-as. Voltou a cruzá-las. A sua voz ergueu-se outra vez, num tom quase perfeitamente coloquial.
- O que me deixa perplexo, realmente perplexo, é que não consigo entender por que razão alguém, a não ser que seja uma criança ou um anjo ou um simplório cheio de sorte como o peregrino, há-de rezar a Jesus que seja minimamente diferente do que aparece no Novo Testamento. Deus meu! É só o homem mais inteligente da Bíblia, nem mais nem menos! A quem é que ele não se sobrepõe? A quem? Ambos os Testamentos estão repletos de sábios, profetas, discípulos, filhos predilectos, Salomões, Isaías, Davides, Paulos..., mas, santo Deus, quem, excepto Jesus, sabia realmente o que se passava? Ninguém. Moisés, não. Não me digas que Moisés sabia. Era um homem bom e tinha uma bela maneira de comunicar com o seu Deus, e tudo o resto, mas a questão é essa. Tinha de comunicar com ele. Jesus percebia que não separação possível de Deus.  - Nesta altura, Zooey bateu com uma mão na outra, uma só vez, e ao de leve, e muito provavelmente sem querer. Tinha as mãos outra vez cruzadas sobre o peito, quase antes, por assim dizer, de se ter apagado o som que fizera. - Oh, Santo Deus, que inteligência! - disse. - Quem, por exemplo, teria ficado em silêncio quando Pilatos exigiu uma explicação? Salomão, não. Não me digas que Salomão teria. Salomão teria arranjado umas palavras sentenciosas para a ocasião. E não tenho a certeza de que crates não fizesse o mesmo, por sinal. Críton, ou outro qualquer, teria tentado ganhar tempo até desencantar um par de frases bem escolhidas que ficassem na história. Mas, sobretudo, quem na Bíblia, além de Jesus, sabia, sabia, que trazemos o Reino dos Céus em nós, dentro de nós, onde somos demasiado estúpidos, sentimentais e falhos de imaginação para o procurar? É preciso ser filho de Deus para saber esse género de coisas. Por que não pensas nisso? Estou a falar a sério, Franny, muito a sério. Quando não se encara Jesus exactamente como era, a Oração de Jesus perde todo o sentido. Se não se compreende Jesus, não é possível compreender a sua oração... não se consegue interiorizá-la minimamente, fica-se só com uma espécie de cantilena. Jesus era um iniciado supremo, por Deus, com uma missão terrivelmente importante. Não era um São Francisco, com tempo suficiente para entoar alguns cânticos, ou para pregar aos pássaros, ou para realizar essas coisas carinhosas tão do gosto de Franny Glass. Estou a falar muito a sério, raios me partam. Como é que não consegues perceber isso? Se Deus quisesse que alguém com a personalidade persistentemente cativante de São Francisco fizesse o trabalho do Novo Testamento, tê-lo-ia escolhido, podes estar certa disso. Mas escolheu o melhor mestre, o mais inteligente, o menos sentimental, o menos imitativo que podia ter escolhido."
J.D. Salinger, Franny e Zooey, trad. Salvato Telles de Meneses, Lisboa: Relógio D'Água, 2002, pp. 149-151.

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