Thursday, January 26, 2012

A BONDADE DOS DEMÓNIOS



" - Teresa, estás enganada! Não há astúcia de que o lobo não se sirva para atrair o cordeiro; tais manhas encontram-se na natureza, na qual a bondade prima pela ausência; esta é a característica da grandeza preconizada pelo escravo, para comover o amo e o convencer a ser brando; a bondade surge no homem em dois casos: quando ele é o mais fraco ou quando receia vir a sê-lo; a prova de que essa pretensa virtude não existe na natureza está no facto de ela ser desconhecida do homem que mais próximo está da mesma natureza. O selvagem, desprezando-a, mata o semelhante sem piedade, quer para se vingar quer por avidez... Se essa virtude estivesse inscrita no seu coração, será que ele a respeitaria? A verdade é que ela não surgiu lá como nunca surgirá onde quer que os homens sejam iguais: a civilização, depurando os indivíduos, dividindo-os em classes, colocando o pobre na frente do rico, inspirando a este o receio duma mudança de estado que poderia precipitá-lo no nada do pobre, inscreve no seu espírito o desejo de consolar o infeliz, para ser por sua vez consolado, no caso de vir a perder as riquezas. Daí nasce a beneficência, fruto da civilização e do temor: é, portanto, uma virtude de circunstância, não é um sentimento da natureza: esta nunca pôs em nós desejo algum que não fosse o de nos satisfazermos, seja por que preço for. É confundindo assim todos os sentimentos, nunca analisando coisa alguma, que se cai na cegueira total e se renuncia a todo o prazer."
Marquês de Sade, Justine ou os Infortúnios da Virtude, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Antígona, 2001, p. 243.

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