LVSIOS
Wednesday, November 20, 2024
ENCONTRO
Tuesday, November 19, 2024
COBERTA
a parede
devolve-me os mortos,
tempo e sombra subindo
no quarto, equações
rangendo, postigo
de sangue apertando
a abordagem do susto."
José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 127.
SOUCIS
"Que nada te perturbe: rumor,
trabalho, a carne
peregrina da terra
imersa na escuridão, o
salto
que o poema pode
desenhar. Ne te fais pas
de soucis, come
a lanterna dupla
do riso, sobe
os andaimes das equações
e lambe, sobretudo
lambe
as privadas lágrimas
do sofrimento."
José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 152.
Sunday, November 17, 2024
ROCHA ALTA
"Já a Pastora chegava ao alto cume
Da serra, onde é mais alta a penedia,
Dond' o olho abaixo olhando, perde o lume,
E entr' ela, e el-Rei só a lança se metia.
Já lhe chega o Tirano, e já presume
Que nem em terra, ou Céu lhe escaparia,
Quando COMBA gritou: ó rocha alta, onde
Venho buscar abrigo, em ti me esconde.
Ó Maravilha grande! abriu-se a dura pedra.
Obedeceu à Santa a rocha dura,
Obedeceu à Santa, e abriu-se a pedra,
E defendeu-a da cruel ventura.
Também a lança do Mouro abriu a pedra,
Ao pé fica assinada a ferradura,
Ao pé da rocha, onde hoje inda parece,
E na pedra a lançada se conhece.
Tanto que em si recolheu, cerrou-se
A dura rocha, assim de Deus mandada."
António Ferreira, Poemas Lusitanos, vol. II, 3ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1971, p. 29.
DORMITÓRIOS
"Não se diz no letreiro que morreu de vinte e um anos, senão que os viveu, porque quem morre ao mundo sempre vive pera Deus e assi nunca morre, e foram, como está dito, seus anos vinte e um, bem poucos a respeito de muitas virtudes que já tinha alcançado; pelo qual em o mesmo letreiro se lhe aplica o que lemos de Enoc no livro do Eclesiástico, isto é, que brevemente cumpriu muitos tempos. Diz mais: que dormiu em paz, porque os mortos hão-de ressuscitar com tanta facilidade das sepulturas como os que dormem de seus leitos e por isso os adros são chamados cemitérios, que é o mesmo que dormitórios. Quando lemos que dormiu em paz, podemos coligir que teve a morte dos justos, que andam na vida sempre diante de Deus, até que no fim se vêm a unir e abraçar com Ele e a descansar em paz, como pedimos nas exéquias de nossos defuntos, sabendo que são bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor"
Frei Luís dos Anjos, Jardim de Portugal [1626], ed. Maria de Lurdes Correia Fernandes, Porto: Campo das Letras, 1999, p. 102.
Saturday, November 16, 2024
VOAR
"Quero voar
sem qualquer depois, esquecer
a fome das manhãs, a
incansável
desdita respiratória. Houve
um falso acordar
um dia, pequeno
relâmpago nenhum."
José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 118.
Friday, November 15, 2024
SILÊNCIO NEVRÓTICO
"Tudo é um branco demasiado vago
na tarde imensa...
A árvore do tédio exala um calor ébrio
que abre o pano do medo
e aprofunda as feridas do tempo.
A rotina com a sua cor sem memória
elogia os vultos que afagaram o Outono.
Estende a cidade na poeira das sombras.
Eu vagamente bêbado de incertezas
deponho o meu fantástico desprezo
na tristeza redonda do momento.
E deixo-me morrer
na curva austera dum silêncio nevrótico."
José Bação Leal, Poesias e Cartas, Porto: Tipografia Vale Formoso, 1971, p. 28.
Thursday, November 14, 2024
SÓ POR DENTRO
"Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração."
David Mourão-Ferreira, Poesia (1948-1988), 3.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 178.
PRAESIDIUM
"Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...?
E o ventre, inconsistente como o lodo?...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo...
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio
vulto da Primavera em pleno Outono...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!"
David Mourão-Ferreira, Poesia (1948-1988), 3.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 179.
Monday, November 11, 2024
FUGIDIA
"A verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu reconhecimento. «A verdade não nos foge»: esta fórmula de Gottfried Keller assinala, na concepção da história própria do historicismo, precisamente o ponto em que essa concepção é destruída pelo materialismo histórico. Porque é irrecuperável toda a imagem do passado que ameaça desaparecer com todo o presente que não se reconheceu como presente intencionado nela."
Walter Benjamin, O Anjo da História, trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 11.
Sunday, November 10, 2024
ACREDITAR
"Conceição tinha outro, de que dizia maravilhas: As Tristezas à Beira Mar. E, lentamente, foi-se estreitando entre ambos uma amizade nova, cimentada em mágoas e alegrias colhidas nos romances. Uma vez, Ramiro perguntou a Conceição se acreditava em tudo o que os romances diziam. Ramiro disse-lhe que sim: que os romances eram mais verdadeiros que a vida, pois apenas se contavam neles tristezas e desgraças, e tristezas e desgraças eram a única coisa verdadeira que o homem encontrava neste mundo."
João Gaspar Simões, Internato, 2.ª ed., Portugália Editora, 1969, p. 309.
Saturday, November 9, 2024
ELEGANTE FIGURA CÉNICA
"Depois já será tarde
para te alcançar no caminho por onde avanças.
Aguardo aqui sentado sentindo o afastamento,
procuro calcular bem os tempos e as distâncias,
as capacidades locomotoras dos meus passos
ou até da minha corrida lesta
ao longo desta paisagem ocelada e formosa.
Mas no fundo o que me interessa
é o cálculo e não a prática,
ou quem sabe depois exercite a prática, em
elegante figura cénica,
após o cálculo de
já não te encontrar no caminho."
Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Cobre, Porto: Editora Exclamação, 2024, p. 344.
VER NASCER A CLARIDADE
"Vem ver nascer a claridade
ver a sombra transformar-se em lume. Como
sabes, sou sempre novo
e falarei em cores
para poderes colorir as camélias."
Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Cobre, Porto: Editora Exclamação, 2024, p. 298.
Tuesday, November 5, 2024
PAUSAS DE LUZ
Sunday, November 3, 2024
ABISMADO
“Onde acabava o céu e começava a terra? E as árvores rumorejavam, os ralos cantavam – um estrépito novo, profundo, incessante, enchia a noite. Ficou um momento debruçado, escutando a amplidão sonora: invadiu-o uma tristeza diferente de todas as tristezas. Sentiu as lágrimas rolarem-lhe pelas faces. Dir-se-ia que a vida acabara para ele. Como era possível uma pessoa ficar assim de repente como morta, tão longe de tudo que amava? Entre o ser debruçado daquela janela e aquele que momentos antes se abraçara a chorar ao pescoço do pai já não havia relação alguma. Tudo o que até então se lhe afigurara a vida – a sua própria vida – era agora uma coisa tão distante como os montes que costumava fitar, abismado, do alto do Castelo de Leiria. Imaginava que para além ninguém podia ser feliz: era como se o mundo acabasse ali e depois fosse a frieza desolada de um planeta morto. Nesse planeta habitava agora.”
João Gaspar Simões, Internato, 2.ª ed., Portugália Editora, 1969, p. 22.
Saturday, November 2, 2024
DIA DOS MORTOS
«Ó Nada, mais velho até que a Escuridão
Já existias mesmo antes da Criação
E és o único que não teme a extinção.
Antes de haver Espaço e Tempo, não havia tal.
Quando o Nada Primitivo criou algo natural,
Tudo – o quê? - se gerou da união original.
Mas teu poder foi comandado por algo profundo
Que da tua mão, cheia de um vazio fecundo,
Fez homens, bichos, fogo, água, ar e mundo.”
Friday, November 1, 2024
SONETO DE OUTONO
Thursday, October 31, 2024
ALL HALLOWS'
"Por esta altura, já pouco mais havia a fazer senão rematar toda aquela conduta com uma orgia na qual as bruxas e os feiticeiros copulavam livremente e se ofereciam ao exigente Diabo, que gostava de tomar as mulheres bonitas pela frente e as feias por trás. Do ponto de vista feminino, Satanás não era o amante ideal, como testemunhou Jeanne d'Abadie, de dezasseis anos, «porque o membro dele era escamoso e causava grande dor. Para além disso, o seu sémen era extremamente frio de modo a que ela nunca engravidasse dele...»."
Paul Newman, História do Terror - O Medo e a Angústia Através dos Tempos, trad. Nuno Batalha, Lisboa: Edições Século XXI, 2004, p. 40.
Wednesday, October 30, 2024
O CONHECIMENTO
"O conhecimento do nosso infortúnio é a única coisa em nós que não é desafortunada."
Simone Weil, A Experiência de Deus, trad. Ana Cardoso Pires, Lisboa: Relógio d' Água, 2024, p. 60.
A VIDA É UM MILAGRE
"A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
À consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres."