Thursday, October 17, 2024

LIVROS ANTIGOS

 


"Há muito que deixei de interpretar à letra os livros antigos. Os ritmos, as motivações, a relação das pessoas com tudo o que as rodeia, os próprios meios de apreensão e decifração do real eram completamente diferentes daquilo que hoje acontece. Quem leu alguma vez, por exemplo, o Satiricon, de Petrónio, fica a saber como uma sociedade é diferentes quando vive sobre o impulso de um outro texto fundador. O que se passava numa sociedade uns tempos antes do cristianismo não tem nada que ver com a sociedade que nasceu e foi formada segundo o texto cristão. E isso é verdade não só na textura intrínseca do tecido da sociedade como também na própria forma de compreender e interpretar a realidade."

 

António Alçada Baptista, Catarina ou o Sabor da Maçã, Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 62.

TEMPO DOS MODERNOS

 



"É este o tempo dos modernos, um tempo de Inferno, aquele que se vê a braços com a impossibilidade de reconhecer o presente (aliás, a determinação mais terrível do tempo infernal n' A Divina Comédia). O tempo moderno é o da repetição, a vertigem de uma queda que nunca chega ao seu termo (e isto já está bem caldeado na experiência barroca do tempo). Por isso a repetição e novidade são dois nomes para dar conta do mesmo. O que é novo, o que é mais novo, é uma vez mais uma versão dos castigos do Inferno da repetição."


Maria Filomena Molder, O Químico e o Alquimista - Benjamin, Leitor de Baudelaire, Lisboa: Relógio D' Água, 2011, p. 128. 

Tuesday, October 15, 2024

GOZO

 



"A vida no alto cativa,
que é a vida verdadeira,
até que esta não nos queira,
não se goza estando viva.
Não me sejas, morte, esquiva;
só p'la morte hei-de viver,
que morro por não morrer."


Santa Teresa de Ávila, Seta de Fogo - 22 poemas, 2ª ed., trad. José Bento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 31.

Sunday, October 13, 2024

VICTORIA VIRGO ET MARTYR

 



"Tal como o Sol se perpetua e brilha
transladando os objectos e os corpos
para o radical equilíbrio dos climas e das temperaturas
assim a palavra no texto se estrutura e associa
às emoções e aos sentimentos a conjectura dando
de um aparente equilíbrio
que nos tabuleiros da sorte a morte ainda se iluda.
Letra a letra conquista-se assim o domínio
ao mesmo tempo que a metáfora
o continente recobre as suas asas, fuscas.
O Sol, por muito que irradie,
não apagará os últimos vestígios
(o rosto que se oculta por detrás da estrutura).
Porque se a escrita a adia
a morte, essa, não a esquece nunca."


Fernando Guerreiro, Metal de Fusão, Black Sun Editores/100cabeÇas, 2023.

Saturday, October 12, 2024

MANIFESTAÇÃO

 


"Eu diria que no tempo de S. Cipriano, a vida interior não atingira ainda a intensidade e os matizes que pode atingir nos nossos dias. Era um mundo mais simples: um mundo de imagens e de acontecimentos exteriores. O homem estava habituado a uma relação muito directa com a realidade. Em certo sentido diria que a própria expressão do misterioso se foi modificando da simplicidade e da ingenuidade de então para a complexidade e a desconfiança com que hoje a encaramos. Nunca é demais citar a frase de Chesterton: «A razão porque os fantasmas abandonaram os velhos castelos da Escócia é porque as pessoas deixaram de acreditar neles.» Isto significa, por outras palavras, que havia no homem uma conformação especial para comunicar com o misterioso e o oculto que inteiramente perdeu. Isso não significa que o misterioso e o oculto tenham sido banidos do real mas que se manifestam doutra maneira."


António Alçada Baptista, Catarina ou o Sabor da Maçã, Lisboa: Editorial Presença, 1988, pp. 62-63.

Friday, October 11, 2024

OUTUBRO

 



"Outubro
mês dos figos maduros
da perfeita tranquilidade
mês
em que das eiras
perdigueiros correm para os currais
e dos currais se ouvem as éguas
outubro
mês dos patos nos ribeiros
mês das serras, das perdizes
dos ferreiros, das cegonhas
das paisagens, das feiras com queijo
do sr. sebastião e dos alpendres
outubro
mês dos meus avós vivos
levando-me a ver os moinhos de água"



Daniel Maia-Pinto Rodrigues, O Afastamento Está Ali Sentado, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 119.

Thursday, October 10, 2024

IMOBILIZAÇÃO LETAL

 


"Se a forma se atreve a anular as forças do caos, não é menos evidente que as forças, insubmissas, retornam. Sempre que acreditamos poder anular o caos, operando a sua superação definitiva, ficamos presos àquilo a que poderíamos chamar uma forma morta, isto é, aquela que se petrifica numa falsa configuração, assentando no mal-entendido que consiste em confundir a força com o inimigo da forma, uma vez que o inimigo da forma não é a força, antes a sua imobilização letal."


Maria Filomena Molder, As Nuvens e o Vaso Sagrado, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, pp. 152-153. 

Monday, October 7, 2024

CASTELO

 



"Cerquem-me de tojos.
Embora!
Esperarei suas flores amarelas.
Em Agosto
maior será minha ânsia de vê-las."


João José Cochofel, Obra Poética, Lisboa: Caminho, 1988, p. 80.

Sunday, October 6, 2024

SUBTIL

 



"O demónio terá de ser outro porque nós nos viemos transformando. Por isso o demónio hoje é subtil, tortuoso, enigmático, enganador. E cá vai a frase de Baudelaire que é obrigatória sempre que se fala no diabo:« La plus  belle ruse du Diable est de nous persuader qu' il n'existe pas.»"


António Alçada Baptista, Catarina ou o Sabor da Maçã, Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 37. 

Saturday, October 5, 2024

CINCO DE OUTUBRO

 




"Toda a terra é
boa para viver
um outono doce
cor da liberdade,

do sol e do vento,
dos lumes da noite,
de tudo o que é bom
ter por companhia,

tudo o que afugente
este pesadelo
de envelhecer

com as mãos vazias
do peso secreto
de outras mãos nas minhas."



João José Cochofel, Obra Poética, Lisboa: Caminho, 1988, p. 158.

Friday, October 4, 2024

SÍMBOLOS

 


"E se bem que se ele se esforçasse por esconder e dissimular aqueles Estigmas gloriosos, tão claramente impressos na carne, e como, por outro lado, via que mal podia dissimulá-los perante os companheiros, e temia no entanto desvendar os segredos de Deus, caiu em grande dúvida: deveria ou não revelar a visão seráfica e a impressão dos Estigmas? "


Florilégio, trad. M.F. Gonçalves de Azevedo, Lisboa: Estampa, 1991, p. 188. 

Thursday, October 3, 2024

LIBERDADE


 

"Num vislumbre, vi-te isolado na minha decisão. O que tomei por apaziguamento, era cepticismo errante. O espírito, voluptuoso, pode descentrar-se da sua imediatez, procurando na eclosão uma forma de vida superior. Indolente de ti, ausente, pudesses tu compreender que a angústia-lava, aquietada, é liberdade."


Ana Marques Gastão, Lápis Mínimo, Lisboa: Oceanos, 2008, p. 78. 

O PASSADO E O PRESENTE

 


"Passado e presente não são, por consequência, conceitos fixados, eles despontam e apagam-se um em favor do outro, enquanto formação e nostalgia produtiva; por isso, não temos de ir buscar a uma terra mais ou menos longínqua, mas sempre à nossa mão, o que quer que seja, para guardarmos nos cofres da nossa cas: a recordação, como gesto constitutivo de uma decisão exterior ao tempo sobre o tempo, não é aceitável em Goethe; por isso, nenhum louvor da novidade, todo o amor vai para o que é eternamente novo."


Maria Filomena Molder, As Nuvens e o Vaso Sagrado, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 56. 

Tuesday, October 1, 2024

COMO A SENTINELA

 


"Desde que me coloquei nos braços de Jesus, sou como a sentinela observando o inimigo desde o mais alto torreão de um castelo. Nada me escapa  ao olhar; muitas vezes admiro-me por ver tão claro, e acho o profeta Jonas digno de desculpa, por ter fugido em vez de ir anunciar a ruína de Nínive."


Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face,  História de Uma Alma - manuscritos autobiográficos, Paço de Arcos: Edições Carmelo, 1995, p. 303. 

Monday, September 30, 2024

GUARDAR SILÊNCIO

 



"Depois da pequena nenhuma alegria
dos emails recebidos,
plenos de palavras fechadas
com trinco,

ergui-me muitas vezes,
num tempo duvidoso, lamacento,
e as janelas da casa abri;

mas sob o traçado da folha de papel
devo guardar silêncio
de paisagens submersas,
de noites acesas pelo clamor dos
cigarros
esmagados na mesa?"



Jorge Gomes Miranda, Nova Identidade, Lisboa: Tinta da China, 2021, p. 52.

LÂMPADA

 



"Não sou fio de Ariadne,
estrela de David,
escada de Jacob ou
sombra de Virgílio.
Todavia, irmãos humanos,
dificilmente encontrareis
quem vos queira tão bem,
guiando-vos pelo dédalo do quarto.

Ainda que um simples gesto apague
o meu rasto no mundo,
o dia em que eu nasci permaneça
na memória da noite,
na solidão das janelas,
no abraços dos amantes."



Jorge Gomes Miranda, Nova Identidade, Lisboa: Tinta da China, 2021, p. 260.

Sunday, September 29, 2024

BATALHA

 



"Pedi-lhe que recitasse para mim. Miguel e os
anjos batalhavam o dragão. Eu vi subir
o mar sobre a areia do mar.
Veio semelhante ao leopardo e o
dragão deu-lhe o seu poder.
A serpente lançou para longe a ponta das
estrelas.
Varria ramos trémulos, vozes de crianças,
anjos feitos céu e folhagem. O rumor de gente que
passava. Tombou entre as penas do sono
move as folhas derrama caridade ao sombrio
passeante restos de coisas algum cão perdido."



João Miguel Fernandes Jorge, "Tronos e Dominações", in Obra Poética, vol. 6, Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 63.

ARCANJO

 




"Tinha a vida do mar. Perdiam-se as naus
pelo brilho da balança
nem calma ou lágrimas limpavam os seus olhos.
Bebeu café quente nas areias do deserto
Mojave. O rosto era semelhante à noite.
A porta tinha vários fechos. O tempo foi
destruindo uns e colocando novos.
A espada tornava à noite."



João Miguel Fernandes Jorge, "Tronos e Dominações", in Obra Poética, vol. 6, Lisboa: Editorial Presença, 2000, p. 60.

Saturday, September 28, 2024

TRIUMFAES

 



"Vês, na atalaia d' essa antiga fortaleza,
Aquele veterano, inválido, alquebrado,
Que, n'um sonho, revive as glórias do passado,
As batalhas triumfaes de homerica grandeza?

Pondo-lhe a fronte e o olhar reluz-lhe sem viveza;
Mas, se vê um pendão, que passa desfraldado,
Ou escuta um clarim, o trémulo soldado
Ergue a cabeça e o torso apruma com firmeza.

É como o velho herói meu velho coração!
Já fraco e sem ardor, depois de tanto amar,
Só vive de saudade e de recordação...

Mas, se passas por mim, no teu gracioso porte,
E, n'um claro sorrir, me envolve o teu olhar,
Logo o sinto, cá dentro, a palpitar mais forte!"



Luís de Magalhães, Antologia Poética, selec. José Valle de Figueiredo, Maia: Edição da Câmara Municipal da Maia, 1998, p. 209.

Friday, September 27, 2024

A FORÇA DE UM MUNDO VIVO (para a memória de Maggie Smith)

 




"Nem o vestido mais leve
substitui a frescura da madrugada.

O fogo cresceu à nossa volta,
e a macieira não lhe resistiu.

A casa manteve-se alta por dentro das flamas.
Os cães aflitos uivaram as primeiras noites.

E recordo: estranhos em casa,
rodeados por labaredas e desastres.

Mas serve-me o vestido
para lembrar a brisa, os lugares.

Teremos de reaprender a plantar,
a reanimar a paixão pelos vales,
a chamar de novo para cá os tordos.

Não se possui a terra. Habita-se nela.
Repara, dou-te sementes para recomeçar.
Esta é a força de um mundo vivo."


Elisabete Marques, Estranhos em Casa, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 58.