Monday, March 24, 2025

RUGAS

 


"Lua coloca a bacia no estrado, deita-se, enrola os braços ao pescoço da companheira, aninha-se e, em poucos segundos, está a dormir. Zé deriva à flor do sono durante muito tempo, mas acaba por mergulhar. Quando emerge, salta do leito e corre para o exterior. Abre a porta. Os beirais estão franjados de eslactites de caramelo que, de vez em quando, sob o efeito do vento e do peso, se desprendem com um retinir de lustres, e a paisagem é duma brancura estonteante, tudo branco e plano, excepto as rugas das paredes. As serras avolumam-se polidas e, nas encostas, sobressai a mancha escura dos carvalhos, só eles, pois as urzeiras e arbustos de menor porte estão completamente submersos. Gostofrio jaz no vale, bichos e homens retidos na toca pela neve. Belo e frio. Zé fecha a porta e vai para a cozinha."


Bento da Cruz, Filhas de Loth, Círculo de Leitores, 1993, p. 38. 

Sunday, March 23, 2025

AD IMAGINEM ET SIMILITUDINEM NOSTRAM

 




"41 (22). Ora, para que a própria unidade da majestade trina e do seu nome chegasse ao nosso conhecimento, assim o afirma essa mesma majestade invisível: Façamos o Homem à nossa imagem e semelhança. Deste modo ensinou o que devemos acreditar. Imprimiu a sua imagem no rosto do homem e disse: à nossa imagem. O conhecimento do Pai e do Filho apreende-se no rosto do homem, sendo o Pai e o Filho tal qual é a forma do seu rosto impressa no arquétipo humano feito de barro, com o qual somos modelados, para que o homem admirasse Deus a partir do próprio homem."



Potâmio de Lisboa, «Acerca da Substância», Escritos, tradução de José António Gonçalves e de Isidro Pereira Lamelas, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2020, p. 144.

Saturday, March 22, 2025

DA POESIA 2

 



"Não sabemos quais, mas procuramos
o lugar mais distante onde se veja
uma rosa contida, geométrica
do que as mãos se aproximam devagar

como se fosse nela que encontrassem
um equilíbrio único, perfeito
por ser interior. Era a presença
que há-de ficar agora dividida

ao longo das arestas, destas linhas
tocadas pelo vento, desfolhadas,
e assim uma outra rosa, a verdadeira,

sujeita-seao rigor, ao que era mínim
como esta florescência que termina
num espaço abstracto, o seu jardim."


Fernando Guimarães, "Paixão e Geometria", in Algumas Palavras - Poesia Reunida (1956-2008), Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 367.

Friday, March 21, 2025

DA POESIA 1

 



"As palavras são altas. Escutaste
o sentido mais íntimo que tinham
só para que de novo ali chegasse
o que já se tornou numa promessa

que se adivinha apenas e ficava
perdida nesta nave, no lugar
que estava destinado a ser o centro
dessas vozes. Talvez haja um motivo

último para entenderes como é maior
esta presença súbita que unia
a tudo o nosso espírito. Mais nada

se pode ouvir depois. E as outras vozes
ausentes é dali que se aproximam
para que exista agora o teu silêncio."


Fernando Guimarães, "Paixão e Geometria", in Algumas Palavras - Poesia Reunida (1956-2008), Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 375.

Thursday, March 20, 2025

TURBULÊNCIA

 



"Um anjo farinhento dissimula
o surdo ruído e a aflação das asas
na sua branca escuridão. Enquanto dura
e a que sucumbe a turbulência da água.

Um anjo farinhento que se embrenha
ao fundo dessa branca escuridão
e arrasta o espaço áspero da azenha 
para um côncavo susto de visão."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 193. 

Tuesday, March 18, 2025

COM O TRONCO AO CENTRO


 

"A ramificação aurífera das árvores
filtra a frança feliz de esbraseamento.
Até o crepúsculo ir extinguindo o ardor que sabe
a escuro conhecimento.
Depois, o vulto de escuridão só se abre 
à passagem da brisa. Que discrimina o alento
carregado de enxúndia, que perde, pelo que foi a tarde, 
a engurgitação de fundos elementos.
E aligeira-se então. Então a árvore
respira. E as raízes destrinçam o escurecimento
pronto à brancura que há-de, na ramagem, 
nimbar a noite. Com o tronco ao centro."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 166. 

Sunday, March 16, 2025

REGRESSO (NO ANIVERSÁRIO DE CAMILO CASTELO BRANCO)


 

"A história dos homens é uma teoria, e uma teoria nunca é trágica. Camilo nunca se explicou cabalmente a respeito desse casamento com Joaquina de França, talvez porque, como ele diz, «este facto de dizer a verdade não me pareceu muito do molde e talho para tapar as bocas do mundo». Do caso deve ter ele saído algo logrado e ferido, apesar das manhas tabeliónicas que lhe imputaram. «Uma infâmia», chama-lhe. Que parte teve nela, o seu silêncio não nos deixa margem para análise; ou podemos compreender aí que a ambição, a impaciência e o desfastio, aliados ao abrir daquela Primavera de 1842, deram ao jovem poeta razões de sobra para uma infâmia bem fundamentada. A Primavera, naquelas serras do Mezio e do Alvão, é um fenómeno que aparenta com a recriação do Mundo: a alma sofre-lhe o mistério, não sem lhe sacrificar as delicadezas que se retomam mais tarde com o andas das estações."


Agustina Bessa-Luís, Camilo, Génio e Figura, Lisboa: Casa das Letras, 2008, pp. 43-44.

Saturday, March 15, 2025

NO TEMPLO




"Na casa do Senhor já ouvi cânticos
         De mística toada,
Que em ondas de harmonia melancólica
Alagavam a nave, hoje deserta!
Que é desses, que eu ouvi, saudosos hinos
        De santa inspiração?
Esses que eu já senti n'alma infiltrar-me,
Em êxtases do céu, fervidas crenças
       Na íntima oração?"



Camilo Castelo Branco, Duas épocas da vida, 3.ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1906, p. 197.

Friday, March 14, 2025

TEMER

 



"E os homens esforçavam-se para regressar à terra, mas não conseguiam, porque o mar continuava a vir e a levantar-se mais contra eles. E eles clamaram ao Senhor e disseram: «Não, Senhor! Que não pereçamos por causa da vida deste homem. E não ponhas sobre nós sangue justo, porque Tu, Senhor, procedeste como querias.»
E pegaram em Jonas e atiraram-no ao mar; e o mar parou a sua agitação. E os homens temeram o Senhor com grande temor; e sacrificaram um sacrifício; e oraram orações."


Jon 1, 13-15, in Bíblia, Vol. III, trad. do grego de Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2017.

Wednesday, March 12, 2025

PERFEIÇÃO

 


"A perfeição sem falha de um São Francisco de Assis torna-o estranho. Não encontro nenhum ponto fraco que me permita aproximar-me e compreendê-lo. A sua perfeição é dificilmente perdoável. No entanto, acho que lhe encontrei uma desculpa. Quando já no fim da vida ficou praticamente cego, os médicos atribuíram o seu mal a uma única causa: o excesso de lágrimas."


Emil Cioran, Lágrimas e Santos, trad. Cristina Fernandes. Lisboa: Edições 70, 2022, p. 48. 

Tuesday, March 11, 2025

VIDA

 


"Assim como a arte procura apoio nos primitivos, também estes homens se voltam para épocas quase esquecidas e para os seus métodos, à procura de uma ajuda, pois eles ainda estão vivos nos povos que, do alto dos nossos conhecimentos, estamos habituados a olhar com piedade e desprezo."


Wassily Kandinsky, Do Espiritual na Arte, trad. Maria Helena Freitas, 7ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2006, pp. 38-39. 

Monday, March 10, 2025

ANIVERSÁRIO

 


"Tudo o que provém do amor puro é iluminado pelo brilho da verdade."


Simone Weil, A Pessoa e o Sagrado / A pessoa humana é sagrada?, trad. Rita Sousa Lopes, Lisboa: Guerra e Paz, 2022, p. 68. 

Sunday, March 9, 2025

RÉPROBO

 




" - Temos a liberdade de escolher.

- Sim, temos esse livre arbítrio não só durante a vida, como depois de mortos. E ele imagina, várias vezes, o caso de um réprobo que chega ao paraíso, ao céu; e então esse réprobo está, bom, entre os jardins do céu, está a ouvir a música celestial, está a conversar com anjos e tudo isso lhe parece horrível e fétido a ele, E, além disso, sofre; por exemplo, sente a luz como uma ferida."



Osvaldo Ferrari, Em diálogo com Jorge Luís Borges, vol. I, trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Círculo de Leitores, 2001, p. 203. 

Saturday, March 8, 2025

POR ENTRE AS CINTILAÇÕES DO FOGO

 


 

"Após algumas explicações pouco esclarecedoras sobre a relação entre o corpo e a alma, Honorius fala do Inferno, ou antes, dos infernos, pois segundo ele existem dois. O inferno superior é a parte inferior do mundo terrestre que está cheia de penas: um calor insuportável, muito frio, a fome, a sede, dores diversas, quer corporais, como as que provêm de contusões, quer espirituais, como as que decorrem do medo ou da vergonha. O inferno inferior é um lugar espiritual onde há um fogo inextinguível e onde se sofrem nove espécies de penas especiais: um fogo que queima e não alumia e um frio insuportável, vermes imortais, especialmente serpentes e dragões, um cheiro horrível, ruídos inquietantes como martelos batendo em ferro, trevas espessas, uma mistura confusa de todos os pecadores, a visão horrível dos demónios e dos dragões visíveis por entre as cintilações do fogo, o clamor lastimoso dos choros e dos insultos e por fim anéis de fogo apertando os corpos dos condenados."

 

Jacques Le Goff, O Nascimento do Purgatório, trad. Maria Fernanda Gonçalves de Azevedo, 2.ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 168. 

Friday, March 7, 2025

IRRUPÇÃO

 


"Este é o rio. A água, esse poderoso material translúcido, um dos quatro mistérios elementais, pode aqui ser vista na sua origem. Tal como todos os grandes mistérios, é tão simples que me assusta. Irrompe da rocha e flui. Durante incontáveis anos, irrompe da rocha e flui. Não faz nada, absolutamente nada, a não ser ela própria."


Nan Shepherd, A Montanha Viva, trad. Jorge Melícias, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 74. 

REVELAR


"A névoa, que esconde, pode também revelar. Por causa dela, é possível distinguir os declives e as ravinas naquilo que parecia ser uma simples colina: uma nova profundidade é acrescentada à  paisagem. E numa longa linha de rochas escarpadas, como a grande muralha meridional do Lago Einich, cada contraforte destaca-se como se de recortes rendilhados de van Dyck  se tratasse. Véus de fina névoa movendo-se à deriva ao longo dessa grande superfície do lago - parecem iridescentes enquanto flutuam entre o sol e a rocha vermelha."


Nan Shepherd, A Montanha Viva, trad. Jorge Melícias, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 97. 

Wednesday, March 5, 2025

CINZAS

 



"Esta chuva nos consola
do tempo que nos devora.


Devolve o pranto acrescido
de uma esperança na terra
que pisamos e adotamos,
terra em que somos sofridos,
desesperamos e amamos,
perseveramos vivendo
(antes mortos que vividos)
e, bem mais, sobrevivendo.

A chuva nos elabora
perfeita flora de antigo."



Maria Ângela Alvim, Superfície - Toda Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 105.

AS HORAS BREVES

 



"Intangível assim
quem lhe pressente
nessa beleza, além, 
asas mais leves?

Presença, serafim
que transparente
aqui pousas e sustém
as horas breves.

Mas sempre sem sinal
- o anjo se elide
em tudo - e nesse raio

que no ar seu cristal
ora reincide
a luz é só desmaio."



Maria Ângela Alvim, Superfície - Toda Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 81. 

Tuesday, March 4, 2025

ENTROIDO

 



"Quanto ao Entrudo, é festa de rascões, porque lhes celebram as vésperas com muita tanhada e sambarcos, com que perseguem os pobres dos saloios, tão soberbos por lhe[s] fazerem uma travessura, como se tomaram Mazagão de uma penada.
A festa do dia avulta mais neles que na outra gente, porque como trazem a fome em viveiro, todo o ano estão de fios secos para aquela conjunção, e cortam por todo o género de mantimento que se lhe[s] oferece, até ver[em] se podem desquitar-se do passado"



Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Obra Poética e em Prosa, ed. Maria Luísa Linhares de Deus, Porto: Campo das Letras, 2007, pp. 233-234.

A CHEGADA DA NEVE

 


"A chegada da neve provém muitas vezes de um céu de um azul resplandecente, com batalhões cerrados de cúmulos brancos e sólidos situados a pouca altitude do horizonte. Um deles enfuna até sair das fileiras, e da sua borda finos pedaços de neve, tão delgados que dificilmente damos conta da sua presença, espiralam delicadamente no céu azul. E, em poucos minutos, o ar fica carregado de flocos."


Nan Shepherd, A Montanha Viva, trad. Jorge Melícias, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 87.