Sunday, March 7, 2010

DOS PARRICIDIOS E DA FALTA DE CONFIANÇA NO AUTOR


"- Em todos os crimes de morte há um poder que se esconde - disse José Rui. Embora a cidade do Porto lhe parecesse indiferente, ele era um seu nativo, morador incondicional e aprendiz constante. Aprendia com o Porto o que não seria possível com outro lugar do mundo, isto é: o lado fechado e não tão indeciso como se julga, da natureza humana. - Seria muito interessante descobrir o que levou Hamlet a matar o pai.
- Não foi Hamlet quem matou o pai - disse Genaro, perto da indignação. Estava, como noutros tempos, meio deitado num sofá de orelhas, só que este em bom estado e em maiores proporções.
- Não se pode acreditar no que dizem os autores. A ficção encobre as verdades mais evidentes. Quanto mais perto está o narrador das «grandes pastagens» do inconsciente, mais a verdade está ao seu dispor. Ésquilo era um desses, e por isso o tema do parricídio é tão bem contado e tão claro. A pior literatura é feita com escritores assustados, ainda que inteligentes. Aqueles de quem Nietzsche disse: "é preciso ser muito valente para descobrir o que é do nosso conhecimento."
-Isso está muito deturpado.
-Deturpar é reagir. O autor reage à realidade e por isso Shakespeare não aceita que Hamlet seja o assassino do pai. Mas é. "Toda a paixão é salário", isto diz Santo Agostinho. Lançamo-nos no fogo para que ele nos consuma até ficar só um resíduo de ouro."

Agustina Bessa-Luís, Antes do Degelo, 2ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2004, p.247.

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