Tuesday, March 19, 2019

O FILHO DE SAUL


"os mortos às vezes carregam os vivos
um homem caminha pelos próprios pés
mas são os passos de outro
que assomam nas suas pegadas
no seu rosto
o olhar é o dos olhos de outro
e ao tocar os lábios com os dedos
estas não são as suas mãos
e não é este o seu gesto

e sábio
deve ser só quem se consegue lembrar
depois de tudo roubado 
do dever da própria memória

uma prece para sempre incompleta
estilhaça-me nos lábios
uma memória imprecisa
que não tem já força para sustentar os alicerces da casa
a mulher os filhos legítimos
o próprio nome
um peito que se enche de ar
um rei é o que pode salvar
um filho de ser cortado ao meio
um homem o que chega depois

por isso um nevoeiro
alastra dos campos
até à nossa memória 
e tudo se enche de vidro

mas nada disto se confunde sequer com o outono
das estações aquela em que se morre mais
ou com o mundo dos vivos
estas poucas horas não guardam pena nenhuma
congelam o sangue e seguem em frente

o espectador ao meu lado vai bebendo whiskey
enquanto sem nos mexermos
e sempre do mesmo ângulo do ecrã
vemos saul
lavar o corpo imóvel do filho
procurar um rabi
esperar pela última prece
como se esta fosse civilização
âncora do tempo e do mundo
e fosse imperturbável
e nada a fosse destruir nunca"


Tatiana Faia, Um Quarto em Atenas, Lisboa: Tinta-da-China, 2018, pp. 40-41. 

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