" - Morreu?!
- Não morreu, meu caro Novais. Um filósofo não deve aceitar no seu vocabulário a palavra morte, senão convencionalmente. Não há morte. O que há é metamorfose, transformação, mudança de feito. Pergunta tu ao doutíssimo poeta José Feliciano de Castilho o destino que tem a matéria. Dir-te-á a teu respeito o que disse de Ovídio, sujeito que não era mais material que tu e que o nosso amigo Silvestre da Silva. «Ovídio cadáver», pergunta o sábio, «onde é que para?» Tudo isso corre fados misteriosos, como Adão, como Noé, como Rómulo, como nossos pais, como nós, como nossos filhos, rolando pelos oceanos, flutuando nos ares, manando das fontes, correndo nos rios, agregado nas pedras, sumido nas minas, misturado nos solos, viçando nas ervas, rindo nas flores, recendendo nos frutos, cantando nos bosques, rugindo nas matas, rojando nos vulcões, etc. isto, a meu ver, é exato e, sobretudo, consolador. O nosso amigo Silvestre da Silva, a esta hora, anda repartido em partículas. Aqui faz parte da garganta de um rouxinol; além, é pétala de uma tulipa; acolá, está consubstanciado num olho de alface; pode ser até que eu o esteja bebendo neste copo de água que tenho à minha beira e que tu o encontres nos sertões da América, alguma vez, transfigurado em cobra-cascavel, disposto a comer-te, meu Faustino."
Camilo Castelo Branco, Coração, Cabeça e Estômago, Lisboa: Aletheia Editora/Expresso, 2017, p. 9.
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