Monday, November 7, 2022

FLUTUANTE


"Vi-o como se fosse Diónisos a personificar o outono. Ao cimo do caminho das faias, onde as folhas rubras se confundem no ar e no chão com as folhas de prata. A cabeça coroada de romãs, pinhas, douradas folhas de videira. Uma das romãs abria, ferida pelo bico de um pássaro, deixava o grená, a gota escarlate, descia pelo negro cabelo. Nos braços, uma cesta com cachos de uvas tintas e brancas; uvas dedo-de-dama. Vi-o, como se fosse pedraria de mosaico inscrita em cercadura no chão do pátio. Perto, os rabirruivos entram e saem do poço. Isto foi muito cedo, pelas sete da manhã. Subi, Já sabia que não havia ninguém. Nunca precisei do deserto para ter miragens nem paraísos artificiais. A imagem, e agora a sério, não é um predicado de grande constância. É mesmo um predicado de nenhuma constância. Totalmente flutuante."


João Miguel Fernandes Jorge e Pedro Calapez, O Próximo Outono, Lisboa: Relógio D'Água, 2012, pp. 196-197. 

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