Monday, May 6, 2024

GEMUNDE

 




"Meu amigo, meu amigo, são palavras, um mundo só de palavras, tu bem sabes, eu bem sei, nós bem sabemos, são palavras, as palavras vivem nossa vida, vivemos nossa vida com palavras, para palavras vivemos, somos palavras, puros nomes, meu amigo, já reparaste, a nossa cabeça, a nossa vida, meu Deus, só palavras, já viste que nos devoram palavras, que palavras nos espreitam? Meu amigo, levanta-te, olha fora, sonda as paredes, apalpa o ar, estamos sós, diz, estamos sós, tranquilos, seguros, não há ninguém, garantes, tens a certeza? Mas as palavras, as palavras somos nós, as palavras decidem nossa vida, vivem nossa vida, matam nossa vida, estão armadas, pesadas, limadas, perfumadas, farpadas, esvaziadas, calculadas, usadas, mentidas, traídas, pervertidas, desconhecidas, proibidas, obrigadas.
Nós, meu amigo, nós, tu, eu, nós, sufocamos entre palavras, delas vivemos, delas morremos, nada podemos, nada somos capazes, não ousamos, não lutamos, não tentamos, com elas nada fazemos, nada com elas nasce por nós."


Maria Aliete Galhoz, Não Choreis, Meus Olhos, Lisboa: Edições Ática, 1971, p. 35.

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