" - Aquela torre foi dos Bracciaforte - contava o senhor Capovilla, apontando a Fanto uma que num embarcadouro à beira do rio se erguia octogonal, rodeada por uma dúzia de casebres cujos telhados vermelhos assomavam por entre as copas dos ciprestes, - que eram os mais avaros dos toscanos, procurando sempre pôr o ouro que entesouravam, que não o viram nem o Sol nem a Lua, e um deles, chamado Latino Bracciaforte dal Piccino, para que não o herdasse um primo que tinha, que era o seu único parente, aconselhou-se com um médico judeu que purgava em Siena em quarto minguante contra a doutrina de Pádua, e por receita deste fez em pó todo o ouro da família, e quatro vezes ao dia bebia uma ração dele com leite de cabra, e messer Isaac de Siena fabricou-lhe um subtil composto que não deixava sair o ouro do corpo, nem pela urina nem por maiores, e que ficava a chapear-lhe as interioridades. No dia em que tomou a derradeira onça áurea, morreu Ser Latino de repente, e o primo, que era Motefosco de Malapreda, que são todos vesgos do direito e canhotos, desde uma avó galicosa que tiveram, teve a notícia da morte (há quem diga que por um corvo que amestrava como correio), e apresentou-se na torre com um tosquiador que tinha um jogo de raspadores catalães marcados na feira de Tortosa, e ambos se encerraram com o cadáver numa sala, e daí a dois dias deram por terminada a raspadura do estômago e da tripalhada, limpando-a do ouro ali amontoado, que estava disposto como escamas de peixe, e fundido deu sete libras genovesas. Luziam os lingotes, mas fediam como se fora excremento humano e teve de fundi-los várias vezes, e o Montefosco passava as manhã a lavá-lo com lírio de Pisa e águas de anis, para os baqueiros florentinos não descobrirem que aquele era o ouro do último Bracciaforte."
Alvaro Cunqueiro, Vida e Fugas de Fanto Fantini, trad. José Colaço Barreiros, Porto: Felício & Cabral Publicações, 1995, pp. 28-29.
No comments:
Post a Comment