Sunday, November 19, 2023

SOBRESSALTO

 


"A janela estava aberta; os galos pareciam rasgar o nevoeiro, de que os pinheiros retinham entre os ramos diáfanos farrapos. Campo banhado de aurora. Como renunciar a tanta luz? O que é a morte? Não se sabe o que é a morte. Teresa não está certa do nada. Teresa não está absolutamente certa de que não haja ninguém. Teresa odeia-se por sentir um tal terror. Ela, que não hesitava em precipitar nele um outro, detém-se em sobressalto diante do nada. Como a sua cobardia a humilha! Se existe esse Ser (e, num breve instante, revê a opressiva festa do Corpo de Deus, o homem solitário esmagado sob uma capa dourada, e o que ele trazia nas mãos, e aqueles lábios que mexiam, e o seu ar de dor...) Já que Ele existe, que desvie a mão criminosa antes que seja demasiado tarde; - e se é sua vontade que uma pobre alma cega transponha a passagem, possa Ele, ao menos, acolher com amor esse monstro, sua criatura."


François Mauriac, Teresa Desqueyroux, trad. Nataniel Costa, 2.ª ed., Lisboa: Estúdios Cor, 1958, pp. 126-127. 

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