Monday, January 1, 2024

INTROIBO

 


"A música punha-me então num estado de entorpecimento muito agradável, um tanto singular. Parecia que tudo se imobilizava, excepto o latejar das artérias; que a vida abandonara o meu corpo, e era bom estar tão cansado.  Era um prazer; era também quase um sofrimento. Em toda a minha vida, encontrei no prazer e no sofrimento duas sensações muito próximas, creio que o mesmo acontece a qualquer pessoa de índole minimamente reflectida. Recordo.me também de uma sensibilidade particular aos contactos, refiro-me aos mais inocentes, o toque de um tecido muito macio, o afago de uma peliça que parece uma lanugem viva ou a epiderme de um fruto. Nada aqui há de condenável; eram sensações demasiado vulgares para acaso me surpreenderem; nunca nos interessamos pelo que se mostra simples. Eu atribuía às personagens da minha gravura emoções mais profundas, visto que não eram crianças. Imaginava-as participando num drama; achava necessário que tivesse havido um drama. Somos todos assim: receamos um drama; somos por vezes suficientemente romanescos para desejar que aconteça, e não nos damos conta de que ele já começou."


Marguerite Yourcenar, Alexis ou o Tratado do Vão Combate, trad. Gaëtan Martins de Oliveira, Lisboa: Relógio D'Água, 2023, p. 25. 

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