Sunday, January 14, 2024

VOAVAM

 


"Era como se falasse de nada. As suas palavras voavam. O que ficava depois das palavras não tinha asas. Nunca pronunciou a palavra «Deus», e quase não consigo escrevê-la, pelo silêncio de que ela a rodeava. Palavra pronunciada diariamente nos outros colégios, desde que eu tinha oito anos. E talvez não seja uma palavra. Qual é a diferença entre um nome e uma palavra? Frédérique cansava-me. Mesmo nos prados, nos bosques, mesmo quando eu fingia observar os vincos das folhas, quando não estavam ainda secas e eu as atormentava, ou me preocupava com as formigas. Ela enrolava as mortalhas para os seus cigarros aromáticos. Eu adiava qualquer pensamento sério para a minha entrada no mundo, contemporizava. Frédérique encontrava-me distraída. Era o meu sétimo ano de internato. Não como ela, que estava no primeiro. Uma neófita. E se calhar já tinha tido uma relação amorosa, ou uma simpatia, já que nunca tinha estado num colégio, e lá fora a escolha é mais ampla, como num mercado."


Fleur Jaeggy, Felizes anos de castigo, trad. Ana Cláudia Santos, Lisboa: Alfaguara/Penguin Random House, 2023, p. 46. 

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