Friday, October 21, 2022

LACUNAS

 



"Quando levantei os olhos da folha em branco:
ali estava o anjo na sala.

Um anjo vulgar,
provavelmente uma das graduações mais baixas.

Não faz ideia, disse ele,
quão desnecessário você é.

Uma só entre as quinze mil cambiantes
da cor azul, acrescentou,

tem mais peso no mundo
que tudo o que você faz ou deixa de fazer,

para nem falar do feldspato
e das Nuvens de Magalhães.

Até a vulgar bonina, que nem mete vista,
deixaria uma lacuna, você não.

Fitei-o nos olhos claros, ele esperava
réplica, uma longa disputa.

Não me mexi. Fiquei à espera
até que ele desapareceu, em silêncio."



Hans Magnus Enzensberger, 66 poemas, trad. Alberto Pimenta, s. l.: Edições do Saguão, 2019, p. 115.

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