"Entrou no que chama os domínios
de Deus
sem declarar ser hóspede,
sem sequer o grão de pó que se infiltra
na mente
em exaltação desértica.
Sem sentir essa penugem que dizem ser dos anjos
a aflorar-lhe
a lâmina
dos seus lábios de insecto.
Ouvira os recitais compassivos
das mulheres domésticas, a prédica acabrunhada
dos teólogos,
não se negara nunca à beleza
dos girassóis indefesos nos seus campos
de indústria.
Entrou nos recintos de Deus
um pouco desabrigado, mas de unhas limpas
e de peito aberto ao que viesse.
De Deus, porque assim lhe disseram os amigos,
porque não eram só as sobras do silêncio,
o chão tão devoluto,
o trabalho arrumado a um canto
Era a sua cabeça em cima duma tábua,
e a sua vida ao lado:
um pequeno embrulho indefinido
a marcar presença
nesses labirintos avessos
aos francos, directos, respiradouros
da morte.
Algumas destas coisas que falamos podem ser eternas,
escrevem-lhe os autores.
A própria flor aberta pela mão do sol
enalteceu-lhe a vista.
Agora, parado, nesses aposentos
de estátuas, ideias e milagres, de crises roedoras
como animais iníquos que se alimentam
do medo,
o amoroso pasma, sente o peso dos tempos
e reza o que lhe resta do sexo,
espesso,
com a solitária mão, mecânica,
fechada."
Armando Silva Carvalho, De Amore, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, pp. 19-20.
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