Thursday, June 24, 2021

SOL DEBAIXO DE NUVENS

 



"Quis soltar-se. Palavra
Que a frio me arrebatas e incendeias, 
Espírito a correr nas minhas veias, 
Sangue em meu cérebro, - sustento
Do que, sem Ti, só fora
Fingir um fingimento!
Quis soltar-se, Palavra, 
Rainha toda poderosa, e escrava
Coberta de cadeias!
Quis descerrar-te, aurora!
Sol debaixo de nuvens, quis abrir
Nas frestas dos teus muros
O rasgão de infinito em que brilhasses!
Minha língua e meus lábios são impuros:
Impurificam tudo;
Quase sempre me deixam falar mudo; 
Falaram antes que falasses.
Ao vento andam dispersos
Os sons antecipados que soltaram. 
Mas se, de longe em longe, o Poeta alcança versos, 
É só porque, Verbo impoluto, 
Aos minúsculos nossos universos
Quaisquer sinais chegaram 
Do teu inacessível Absoluto."


José Régio, Colheita da Tarde, Porto: Brasília Editora, 1984, pp. 115-116. 

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