Sunday, June 20, 2021

TODAS AS RUAS VAZIAS

 



"      deus tem de ser substituído rapidamente por poemas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis, vivos e limpos. 

        a dor de todas as ruas vazias. 

        sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio, e na sua simplicidade, na sua claeza, no seu abismo. 
        sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo. 

       a dor de todas as ruas vazias. 

       mas gosto da noite e do riso de cinzas, gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados. 
       pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo. 

      a dor de todas as ruas vazias. 

      pois bem, mário - o paraíso sabe-se que chega a lisboa na fragata do alfeite. basta pôr um lua nervosa no cimo do mastro, e mandar arrear o velame. 
      é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem cadastro. 

      a dor de todas as ruas vazias. 

      sujo os olhos com sangue, chove torrencialmente. o filme acabou. não nos conheceremos nunca. 

      a dor de todas as ruas vazias. 

      os poemas adormeceram no desassossego da idade. fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais curto e, por vezes, ouço-os no transe da noite, assolam-me as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas... e nada escrevo. 
      o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar. 

      a dor de todas as ruas vazias."



Al Berto, Horto de Incêndio, 3.ª ed, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, pp. 39-40. 

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