" deus tem de ser substituído rapidamente por poemas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis, vivos e limpos.
a dor de todas as ruas vazias.
sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste silêncio, e na sua simplicidade, na sua claeza, no seu abismo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de acabar comigo mesmo.
a dor de todas as ruas vazias.
mas gosto da noite e do riso de cinzas, gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.
a dor de todas as ruas vazias.
pois bem, mário - o paraíso sabe-se que chega a lisboa na fragata do alfeite. basta pôr um lua nervosa no cimo do mastro, e mandar arrear o velame.
é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem cadastro.
a dor de todas as ruas vazias.
sujo os olhos com sangue, chove torrencialmente. o filme acabou. não nos conheceremos nunca.
a dor de todas as ruas vazias.
os poemas adormeceram no desassossego da idade. fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais curto e, por vezes, ouço-os no transe da noite, assolam-me as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas... e nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.
a dor de todas as ruas vazias."
Al Berto, Horto de Incêndio, 3.ª ed, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, pp. 39-40.
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