"Estou em crer que nem a arte
se suporta já um final feliz.
Contou-me que tinha chegado
pelo fim de uma tarde de outubro.
As vinhas cobriam-se de vermelho.
Ao abrir o portão de ferro
a muito custo,
as últimas chuvas tinham amontoado
as folhas caídas, deparou
com um jardim de heras, buxo e
ciprestes.
O vento arrastava a sombria casa,
cada vez mais ia o escuro
os ciprestes
enverdecendo. Uma folha enlameada
bateu-lhe na cara; um morto que se
erguesse vindo da sala grande
com cortinados e varandas largas
não lhe teria tocado de outro modo
mole, rente ao seu apertado coração. Um
ramo de árvore ritmava nos vidros.
Contou-me, de modo tão simples
que viemos à terra para sermos felizes
e não para sofrermos sem parar. Uma
sala assim carregada de espelhos,
quando as folhas e o vento e os ramos
passam do fim da tarde de outono para
a noite do outono, quando a lua se levanta
e risca tudo de branco revela
o que julgas ainda não ser."
João Miguel Fernandes Jorge, Invisíveis Correntes, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, pp. 15-16.
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