Monday, September 6, 2021

SALA GRANDE

 



"Estou em crer que nem a arte
se suporta já um final feliz.

Contou-me que tinha chegado
pelo fim de uma tarde de outubro.
As vinhas cobriam-se de vermelho.
Ao abrir o portão de ferro

a muito custo,
as últimas chuvas tinham amontoado
as folhas caídas, deparou
com um jardim de heras, buxo e

ciprestes.
O vento arrastava a sombria casa, 
cada vez mais ia o escuro
os ciprestes

enverdecendo. Uma folha enlameada
bateu-lhe na cara; um morto que se
erguesse vindo da sala grande
com cortinados e varandas largas

não lhe teria tocado de outro modo
mole, rente ao seu apertado coração. Um
ramo de árvore ritmava nos vidros.
Contou-me, de modo tão simples

que viemos à terra para sermos felizes
e não para sofrermos sem parar. Uma 
sala assim carregada de espelhos, 
quando as folhas e o vento e os ramos

passam do fim da tarde de outono para
a noite do outono, quando a lua se levanta
e risca tudo de branco         revela
o que julgas ainda não ser."


João Miguel Fernandes Jorge, Invisíveis Correntes, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, pp. 15-16. 

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