"A graça, o que mais se parece com a gratidão, tornou-se intolerável. Há uma agressividade oficial que a impede de sobreviver. O homem é treinado para actualizar a sua servidão, e não para assumir o seu sacrifício. Sacrifício maravilhoso, dádiva em que as margens do tempo se confundem e em que a vida e a morte se tocam quase ternamente. Damos demasiado significado a nós próprios, mergulhamos cada vez mais num abismo confidencial. Instauramos a solidão, embora estejamos aturdidos pelo número. Medimos a extensão das catástrofes e aproveitamos nelas o paralelo com o nosso fracasso. Isto doura a solidão, prodigaliza à inveja consolos inestimáveis. A guerra nuclear substitui hoje a fornalha do inferno, ambas ideias apadrinhadas pelo inconsciente colectivo da natureza apocalíptica. A pequena história do quotidiano, isso que fazia o fermento da mais bela literatura, é tomado como ofício da pobreza envergonhada. Ser escritor tornou-se, como tudo, uma maneira de suportar a mediocridade. Primeiro, o poeta era o sábio; depois, as letras foram um mester, um talento aparentado com o funambulismo; e agora, tornaram-se numa complicada tentativa para seduzir e influenciar. Não há hoje praticamente ninguém que não esteja possuído da intenção pueril de ganhar a simpatia dum público. É a atitude que tomam as crianças por traumatismo da sua debilidade. O escritor quer agradar, o político precisa de agradar, o metafísico aspira a agradar. Esta subserviência que se instala numa fraude da desafectação, de impune demagogia, acaba por institucionalizar-se na pura superficialidade. E marca a agonia duma cultura. A graça, contrário da exibição, alma sincera que persuade, desaparece. A civilização torna-se num método unicamente concebido para sobreviver."
Agustina Bessa-Luís, Contemplação Carinhosa da Angústia, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2000, pp. 22-23.
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