"Para Anninka, aquela cerimónia sempre fora muito comovente. Em criança, chorava amargamente quando o padre lia: «E fizera uma coroa de espinhos e puseram-na na Sua cabeça e uma cana na mão direita» - e numa voz fina, quebrada por soluços, acompanhava o coro: «Glória ao Teu longo sofrimento, Senhor! Glória a Ti!» E quando a cerimónia acabava, trémula, corria para o quarto das criadas e, na penumbra (Arina Petrovna não dava velas às criadas quando não havia trabalho), falava às servas na «Paixão do Senhor». As servas vertiam lágrimas silenciosas, davam suspiros fundos. Na sua servidão, sentiam que o seu Senhor e Redentor estava perto, acreditavam que Ele se erguia de facto de entre os mortos. E Anninka também sentia e acreditava. Para além da noite funda do castigo, da troça e da malícia, todos aqueles pobres de espírito viam o reino da luz e da liberdade. A própria bárynia velha, Arina Petrovna, habitualmente severa, tornava-se mais branda durante esses dias, não ralhava, não censurava Anninka por ser órfã, e afagava-lhe a cabeça e dizia-lhe que não se afligisse. Mas Anninka, mesmo na cama, não conseguia acalmar durante muito tempo, mexia-se, dava muitos saltos durante a noite e falava durante o sono."
Saltykov-Shchedrin, A Família Golovliov, trad. Manuel de Seabra, Lisboa: Relógio D'Água, 2010, p. 275.
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