" - Nesta desolação, os deuses consolam-se com o que criaram no primeiro dia - notou Alexandre (a luz, a chama rara do círio que a corrente de ar desordenava).
- No segundo dia, se não me engano, a terra enxuta - prosseguiu. Vivente. - Estava a terra enxuta no seio da madeira desvirginada do tabuado.
- E nada do terceiro dia.
- O que era, Arlette? - perguntou Horácio.
- Árvores. Verdura. Mas aqui a verdura é escassa. É para o gado.
- De facto, não comemos hortaliça na pensão.
- No quarto dia: o sol e a lua.
- Não deram ontem esparregado ao jantar?
- Estão mal. Nem o sol, nem a lua se vêem.
- E no quinto dia, quem se lembra? - insistiu Vicente.
- Eu - disse Arlette. - As aves, os peixes, os animais viventes.
- Os deuses continuam a estar mal. Esses também não se vêem.
- Avistam-se, quando abrem a porta de par em par."
Maria Gabriela Llansol, "O Estorvo", in Cantileno, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 98.
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