Saturday, September 3, 2022

RAMPA

 



"Os meus mortos deram-me versos, assombros- um rio
acampado na memória.
(Os pássaros tomam o ar do seu canto - vento, 
vento espantado.)
          E se troveja, 
cobrem-se de colchas e de toalhas os espelhos
da casa;
colocam-se três montículos de cinza fresca
nos cantos interiores das portas, 
e um fio de sorte, em sal grosso, ao longo do peitoril
das janelas voltadas a nascente - que se fecham, 
flor do mato, 
sem luz eléctrica nem água canalizada;
sem pára-raios.
         Sem pára-raios, 
desmembram os relâmpagos, faísca
sobre faísca, 
as árvores antigas da terra - que rodeiam, 
estremecem - amuleto e feitiço, 
como se Deus se soletrasse
na pedra inaugural do meu rosto."


Zetho Cunha Gonçalves, Noite Vertical. Poemas reunidos (1979-2021), Lisboa: Maldoror, 2021, p. 101. 

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