"O papel não tinha consumo normal e era coisa fina, ténue, melindrosa e pela qual havia tanto respeito e veneração que, por mais sujo, sempre era papel e digno de cobrir pela Páscoa uma parede defumada, de debruar o buraco da copeira ou a tosca prateleira da cozinha onde se guardava sagradamente o pão, mais pelo que representava de sangue dos trabalhadores e pela mística de ser o corpo de Jesus Cristo do que para o preservar da porcaria que, a bem dizer, era indiferente.
Na Páscoa, festa da limpeza, chegado o domingo de Ramos, às portas da Semana Santa, toda a mulher se preparava para esfregar o sobrado - quem o tinha - os tarecos na rua, água para cima com ou sem sabão, às vezes apenas com um punhado de cinza para arrancar as nódoas de gordura e principalmente o esterco que um ano inteiro deixou acumular. Lavavam-se as caras, por vezes havia até quem tomasse banho, se o calendário atirava com a festa lá mais para diante e o tempo não vinha frio, que «em Abril queima a velha o carro e o carril», irregular como é a Primavera naquelas paragens. Então, tudo mais ou menos lavado, buscavam um jornal, mesmo imundo. Aí iam as mulheres, em bando, aos gravatinhas - que elas bem sabiam quem os recebia e quem os não recebia - pedir um jornalzinho para pôr na prateleira da cozinha ou para tapar o buraco da parede no dia de o padre tirar o folar."
Luís de Carvalho e Oliveira, Santofâmia, Lisboa: searanova, 1962, p. 179.
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