Sunday, September 15, 2024

LAMENTO

 



"Há uma lamentação nas coisas imperfeitas
como se amassem, como se recordassem.
Tudo pede um deus. E o lamento
é a própria imperfeição. A terra é fulgurante, ~
macera as criaturas, dá-lhes alimento,
venenos, temperaturas. E sobre os arenitos,
depõe restos de chuvas, as erosões gravadas
dos apagamentos. A dor deve doer
e os animais agitam-se, movem a cabeça
ao mais leve chamamento. Mas não há chamamento.
Apenas o sussurro de regresso ao horizonte:
um álamo negro, o deus, a voz humana."


Carlos Poças Falcão, "Movimento e Repouso", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 211.

DORES

 




"De estar aqui no mais frágil mundo
peço a rectidão, o rosto bem talhado
de uma presença austera. Espero aquela voz
que se resguarda, que tende a não falar
até um dia, de dia, para que um dia."



Carlos Poças Falcão, "Sombra Silêncio", in Arte Nenhuma, Língua Morta/Livraria Snob, 2020, p. 469.

Friday, September 13, 2024

EVOLUÇÃO

 




" Acrescentou:
- Mas a normal evolução corre perigo. Certos loucos tentam salvar o ambiente físico e domesticar as doenças, outros querem fazer do homem um ser livre, autónomo! Programada há muito, a evolução não precisa de liberdade, a liberdade é uma doença, um resultado do excesso de oxigénio e da falta de radiações atómicas. E poderíamos até falar do homem como acidente infeliz da evolução, se não devêssemos antes considerá-lo um instrumento essencial. utilíssimo para criar o novo ambiente físico, o habitat do novo primata. Donde resulta um grande problema: a natureza utilizou o homem para corrigir o ambiente, degradá-lo. Mas pergunto: porque não criou logo de início um ambiente poluído, poupando o ingrato artifício de recorrer ao homem? Enfim, aparentemente a natureza desconhece o princípio da economia... - Aqui a condenação e o desgosto mostravam-se evidentes."


Augusto Abelaira, O Triunfo da Morte, Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981, pp. 103-104.

Thursday, September 12, 2024

CACTOS

 



"Espantas-te, querida amiga? Não acreditas? Mas acreditas naquele cacto, ali junto à janela embora te esqueças de o regar de vez em quando. E que vou levantar-me, desenferrujar um pouco as pernas... Queres ouvir, acredites ou não, o que diziam os outros oradores? Interessa-te?"


Augusto Abelaira, O Triunfo da Morte, Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981, p. 72. 

Monday, September 9, 2024

SOL

 


"Mas, se acreditares, só te peço uma coisa, não vejas nestes factos qualquer carácter simbólico, qualquer sentido para além deles. Os factos, nada mais querem significar, recuso-me a considerá-los substitutos de outra coisa, recuso-me a concluir que falar em A é uma forma de dizer B, que dizer pombas exprime paz. Um octógono é um octógono, não designa a eternidade. Um quadrado é um quadrado, não manifesta um sinal da terra. Um círculo é um círculo, não simboliza o céu. Por muito que isto pese a Carlos Magno e às suas pretensões de exprimir a missão do rei neste mundo através das igrejas de planta central. Das igrejas de planta central!
No presente texto diz-se somente o que se diz. Nada mais. Não vejam nele uma alegoria. Quando muito, uma alegoria que nada alegoriza. 
Já vai sendo tempo, julgo eu, de pôr de lado a ideia de que as coisas em vez de se designarem a si próprias, significam não sei quê. E Alberto Caeiro sabia-o. E também as palavras só se designam a si próprias, claro."


Augusto Abelaira, O Triunfo da Morte, Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981, pp. 53-54. 

Sunday, September 8, 2024

SEDE

 


"Pois quando acabamos de beber, todos os homens bons e honrados são nossos irmãos e todas as mulheres simpáticas nossas irmãs  - e não existe nenhuma diferença entre camponeses e comerciantes, judeus e cristãos; e ai daquele que afirmar o contrário!"


Joseph Roth, O Leviatã, trad. Álvaro Gonçalves, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p. 35. 

A GRANDE FESTA

 


"Prosseguindo. A nossa vida divide-se praticamente entre produção e consumo... O consumo na maior parte dos casos representa pouco, simples forma de preencher o tempo vazio, desprovido de substância, realidade artificialmente cronometrada  que desse modo deixou de ser um tecido espesso para se transformar numa série numérica, um nada pontuado por alguns acontecimentos cíclicos: as refeições, por exemplo. Mas há outra coisa: a intensidade, fazer da vida um prazer, uma grande festa. Devo confessar, todavia, que não nasci com grande vocação para a festa, a festa intuímo-la directamente com o tempo ou então transforma-se num simples ornamento sobreposto."


Augusto Abelaira, O Triunfo da Morte, Lisboa: Sá da Costa Editora, 1981, p. 19. 

Friday, September 6, 2024

XISTO

 



"Certo ouro que há no tijolo.
Talvez o sol fundo,
mascavo, mastigado
em água e lenha
até que esteja doméstico.

Condiz com diamantes, rubis,
embora não vá em pulseiras
ou anéis e passe ao largo
de vitrines, cofres,
mantendo sempre o áspero,

seja em barracos, palácios,
ou na origem de
uma estranha mística:
se o homem veio do barro,
a alma é lama."



Eucanaã Ferraz, Desassombro, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2001, p. 104.

Thursday, September 5, 2024

A MEMÓRIA

 

´

"Com uma palavra
encontrada por acaso no meio do
frio das vozes técnicas

ou com um simples aceno
semelhante a um frasco
de compota caseira

reparar a memória
da água ferida
pelo derrame."


Jorge Gomes Miranda, Nova Identidade, Lisboa: Tinta da China, 2021, p. 314.

Tuesday, September 3, 2024

ANIVERSÁRIO

 




"No que diz respeito a Nissen Piczenik, que na altura igualmente foi ao fundo, não se pode dizer que se tenha simplesmente afogado como os outros. Pelo contrário -, e isto pode ser contado em boa consciência - regressara aos corais, ao fundo do Oceano, onde se enrosca o poderoso Leviatã.
E se quisermos acreditar no relato de um homem, que - como se costuma dizer - por um milagre escapou na altura à morte, então temos que comunicar que Nissen Piczenik, muito antes de os barcos salva-vidas estarem cheios, se atirou ao mar para junto dos seus corais, dos seus corais autênticos."



Joseph Roth, O Leviatã, trad. Álvaro Gonçalves, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, p.75.

Monday, September 2, 2024

VASTA PLANÍCIE

 



"Durante o período de férias que o jovem foi autorizado a gozar em Progrody, o comerciante de corais quase não se afastou dele. O jovem achava estranhas as perguntas que o mais velho lhe fazia, como por exemplo:
«Pode-se ver o fundo do mar com o telescópio?»
«Não» - dizia o marinheiro - «com o telescópio vê-se apenas ao longe e não o fundo.»
«Pode um indivíduo» - continuava Nissen Piczenik a perguntar - «deixar-se cair até ao fundo do mar quando se é marinheiro?»
«Não» - dizia o jovem Komrower - «só quando se afoga é que se vai ao fundo do mar.»
«O capitão também não pode?»
«Também o capitão não pode.»
«Já viste alguma vez um mergulhador?»
«De vez em quando» - dizia o marinheiro.
«Os animais e as plantas do mar vêm às vezes à tona da água?»
«Apenas os peixes e as baleias, que na realidade não são peixes.»
«Descreve-me o mar» - dizia Nissen Piczenik.
«É uma imensidão de água» - dizia o marinheiro Komrower.
«E é tão vasto como um campo extenso, uma vasta planície por exemplo, em que não se vislumbra uma única casa?»
«É assim tão vasto - e ainda mais!» - dizia o jovem marinheiro."


Joseph Roth, O Leviatã, trad. Álvaro Gonçalves, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, pp. 37-38.

Sunday, September 1, 2024

PALÁCIO DE CRISTAL

 


"Os pés descalços, calejados, produziam rufos abafados e alegres nas tábuas ocas do estrado de madeira e no corredor vasto e frio da velha casa onde o comerciante vivia. O corredor abobadado conduzia a um átrio recatado, onde, entre pedras da calçada irregulares, vicejava musgo suave e, nas estações mais quentes, crescia erva espontânea. Aqui, as galinhas de Piczenik, encabeçadas pelos galos, de garbosas cristas vermelhas, como os corais mais vermelhos, iam amigavelmente ao encontro das camponesas."


Joseph Roth, O Leviatã, trad. Álvaro Gonçalves, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001, pp. 23-24.