"Todo o mito é um padrão enriquecido,
uma preposição de duas faces,
que permite ao seu operador dizer uma coisa e significar outra, viver uma vida dupla.
Daí a noção no pensamento grego arcaico de que todos os poetas são mentirosos.
E das mentiras verdadeiras da poesia
gotejou uma pergunta.
De verdade, o que é que liga palavras e coisas?
Não muito, decidiu o meu marido
e prosseguiu a utilizar a linguagem
do modo que Homero diz que os deuses a utilizam.
Todas as palavras humanas são conhecidas dos deuses mas têm para eles outros significados
além dos nossos.
Eles pressionam o interruptor a seu bel-prazer.
O meu marido mentiu sobre todas as coisas.
Dinheiro, reuniões, amantes,
o local de nascimento dos pais,
a loja onde comprava as camisas, a ortografia do seu próprio nome.
Mentia quando não era preciso mentir.
Mentia quando não era sequer conveniente.
Mentia quando sabia que sabiam que estava a mentir.
Mentia quando isso lhes partia o coração.
O meu coração. O coração dela. Muitas vezes me pergunto o que lhe aconteceu.
A primeira.
Há algo de puramente-aguçado e incandescente acerca da primeira infidelidade num casamento.
Táxis para a frente e para trás.
Lágrimas.
Fendas na parede onde é esmurrada.
Luzes acesas até altas horas da noite.
Não posso viver sem ela.
Ela, esta palavra que explode.
Luzes ainda acesas de manhã."
Anne Carson, A beleza do marido, 2.ª ed., trad. Tatiana Faia, Lisboa: não (edições), 2020, pp. 43-45.
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