"Os pastores, quando os vêem, temem pelos rebanhos
e mandam os seus cães ladrar mais alto; o medo
pousa, ao anoitecer, nas árvores e nas portas,
calam-se os sonos, quando alguns deles morre.
As virgens não percebem o estranho e leve abraço,
a carícia sem gesto, o calor sem vertigem,
o salmo sem pronúncia, a palidez sem cor
que de repente cobre as curvas do seu corpo.
Os encontros são vagos e solenes indícios
de que eles se aproximam; das volutas em arco
da igreja sem imagens, sobre um tranquilo coro,
um anónimo requiem de paz e de abandono.
Os guerreiros descobrem seu peito ao inimigo,
as prostitutas benzem a cama por fazer;
os marinheiros partem depressa para o mar
e os cegos não resistem à tentação da música.
Os poetas compõem hinos de amor, enquanto
confiam na propícia brancura do papel.
A memória fugiu-lhes, e é indiferentemente
que o vinho lhes escorre dos ombros incompletos."
Raul de Carvalho, Lâmpadas Acesas para Aumentar o Dia, selec. e apresentação de Diogo Martins, Lisboa: Língua Morta, 2020, pp. 78-79.
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