Wednesday, March 23, 2022

PAREDE QUE FOGE

 



"Eu não fabrico a água.
Estas árvores existem. Estas mãos
estendem-se. Os meus passos
conjugam-se entre árvores, ruas, muita gente. 

Mas eis a distância (a do deserto)
e aqui aproximo-me, é um desvio
verde, não a terra encantada, 
à beira de ser eu, antecipo a vaga
que a língua move,
parede que foge e que se eleva
sobre a água, sombra e relvas. 

O percurso é incerto. A cidade 
é longe. E aqui a ausência
de uma árvore.
Interminável suspensão.
Mas a transparência existe.
Os músculos da boca são redondos.
No pulso bate a seiva. Sinto-me vivo.
Ó móvel vagar que eu pronuncio.
E a luz sempre, a luz e a sombra.
Entre uma e outra estendo a rede.
Eu quero beber a água deste dia
antes da noite."


António Ramos Rosa, "O Chão do Sopro", in Obra Poética I, Lisboa: Assírio & Alvim, 2018, pp. 328-329. 

No comments: