Tuesday, March 29, 2022

TEMPO

 


"Como aprendera muito, ganhara muito calo e não confiava em ninguém, era às vezes útil, com a sua prudência e palavras de conselho. Tão sensata como o são as pessoas cobardes que recomendam a paz para não terem de se pronunciar num dos campos, não tinha exactamente inimigos. Ainda que a achassem perversa, ninguém se autorizava a apontar-lhe culpas, porque não se doía pessoalmente de qualquer dano. Assim, o mal passivo corrompe mais do que um deliberado espírito de extermínio; somos depressa cúmplices dos crimes de que nos iliba a opinião pública, o monstro afeiçoado pela civilização e que vive no fundo do nosso eu, não está nunca longe de cumprimentar um assassino que iludiu todos os inquéritos e desfez todas as provas, como se saudasse um herói. Toda a casta de força nos comove, a nós pobres ervas agoiradas por um destino pelintra; toda a violência é uma vingança contra o absurdo, e a mais bela pátria conta as suas honras pelo número das suas brutalidades. É tempo de mudar, voltar o eixo da terra, insuflar a vida dos mortos caídos com o consentimento doce e sugestivo de cada um de nós. É já tempo."


Agustina Bessa-Luís, A Muralha, Lisboa: Amigos do Livro/TV Guia, 1986, pp. 67-68. 

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