Wednesday, May 10, 2023

JORNADEAR

 



"O leitor provavelmente há de ter jorneado alguma vez; sabe portanto que o grato e quase voluptuoso alvoroço, com que se concebe e planiza qualquer projecto de viagem, assim como a suave recordação que dela guardamos depois, são coisas de incomparavelmente muito maiores delícias do que as impressões experimentadas no próprio momento de nos vermos errantes em plena estrada ou pernoitando nas estalagens, e mormente nas clássicas estalagens das nossas províncias. As pequenas impertinências, em que se não pensa antes, que se esquecem depois, ou que a saudade consegue até doirar e poetizar a seu modo; esses microscópicos martírios, que de longe não avultam, actuam-nos, na ocasião, a ponto de nos inabilitar para o gozo do que é realmente belo. A dureza do colchão em que se dorme, de albardão ou selim sobre que se monta, o tempero ou destempero do heteróclito cozinhado com que se enche o estômago, a lama que nos encrusta até os cabelos, o pó que se nos insinua até os pulmões, o frio que nos inteiriça os membros, o sol que nos congestiona o cérebro, tudo então nos desafina o espírito, que trazíamos na tensão necessária para vibrar perante as maravilhas da natureza ou da arte."


Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, Porto: Livraria Simões Lopes, 1948, pp. 12-13. 

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