"Aos mortos devo os modos de criar
silhuetas ou sinais,
de olhar cadeiras delicadamente sem porquê
no delírio da hora nocturna.
Mas com eles também aprendi a estremecer,
a perder as feições,
a esfregar-me nas diferentes matérias
como um gato.
Já não posso pensar em gerânios
sem que um cresça no meu umbigo
e me doa a cor espargida
como a marca de um crime.
Porque alguém colheu gerânios
com alegria firme
e de flor viveu a sua vontade.
Heras crescem nas escadas,
invadem devagar o quarto desalumiado.
Como a recordação de uma casa antiga.
Quem teria plantado tal vegetação?
Quem a teria regado no verão dos seus anos?
Herdei gerânios e maravilhas crescidas por acaso,
herdei a lembrança descompensada
do amor por alguém que nunca conheci,
e a ferrugem, as fotografias, os nomes, um jardim."
Elisabete Marques, Estranhos em Casa, Lisboa: Língua Morta, 2022, pp. 63-64.
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