"Fora à sobremesa de um almoço igual a todos que, pela primeira vez, haviam sentido oscilar os alicerces da casa. A avó, que até então se conservara lúcida apesar dos seus noventa anos, passara a manhã a divagar, a trocar os nomes, a perguntar por uma prima que morrera havia trinta anos. Nesse dia, à sobremesa, depois de lhe terem servido a geleia, quisera provar um alperche da quinta. Estendera a mão e apalpara, não os frutos, mas as rosas, escolhendo uma, a maior, a mais vermelha. Aterrados, os filhos, a neta, os bisnetos, as criadas, viram-na pôr a rosa no prato, levar à boca uma garfada de pétalas, e não ousaram fazer o gesto, dizer a palavra que a colocaria do outro lado da vida, na antecâmara da morte. Sentiram no mais fundo de si próprios que principiara nesse momento a desagregar-se, a dissolver-se no húmus do tempo, a raiz-mãe que, durante quase um século, alimentara, com a sua robusta seiva, as flores e os frutos de três gerações.
Fora então que Maria da Lua se levantara e lhe dissera com uma voz calma e sem timbre:
- Esse, não, avó, ainda não está maduro.
A avó olhara a rosa desfolhada e concordara:
- Tens razão, a fruta verde faz mal."
Fernanda de Castro, Maria da Lua, 5.ª ed., Lisboa: Editorial Verbo, 1984, p. 30
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