Monday, July 26, 2021

ACOLHER


"Elisabeth não ignorava que a paixão que os pais punham em celebrar as várias festas do ano em que havia troca de presentes, em festejar os dias de aniversário e estarem sempre a pensar em novas surpresas, possuía um significado mais profundo e tinha uma relação mais profunda, embora difícil de entender, com coisas novas; é certo que Elizabeth não sabia que todo o coleccionador vai além das coisas que reuniu, vai até ao infinito, com o carácter absoluto e sem falhas da sua colecção, que nunca é atingido, nunca é atingível e, contudo, é incessantemente procurado, não sabia que, ao diluir-se na sua colecção, ele espera também atingir o seu próprio absoluto e a abolição da sua morte, Elisabeth não o sabia, mas rodeada por toda aquela quantidade de coisas belas e mortas, reunidas e amontoadas em torno de si, rodeada por tantos quadros belos, pressentia, no entanto, que os quadros estavam pendurados nas paredes como se servissem para as reforçar e como se todas as coisas mortas servissem para acolher, talvez também esconder e proteger, algo muito vivo, algo a que ela própria estava tão ligada que, por vezes, não podia deixar de pensar que, quando chegava um novo quadro, era um irmãozinho, algo que tinha de ser objecto de cuidados e de que os pais cuidavam como se  vida em comum de todos disse dependesse; pressentia a angústia que subjazia a tudo isso  que, com a festa, procurava silenciar o quotidiano, que é o envelhecer, uma angústia que assegurava constantemente a si própria - uma surpresa sempre experimentada de novo - que eles estavam vivos e nascidos e definitivamente juntos e que o seu círculo se fechara para a eternidade."


Hermann Broch, Os Sonâmbulos, trad. António Sousa Ribeiro, Lisboa: Relógio D'Água, 2018, pp. 76-77. 

 

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