"Hoje, quando me dirigi para lá por volta do meio-dia, avistei debaixo das romãzeiras e dos mirtos, um menino que tinha nas mãos bagas de mirto e romãs; era branco como o leite, louro como a chama, luzia como se tivesse saído do banho. Estava nu e sozinho; divertia-se a colher tudo o que encontrava, como se o jardim lhe pertencesse. Tentei agarrá-lo, temendo que na sua imprudência me partisse os mirtos e as romãzeiras. Mas ele escapou-me com desembaraço e facilidade, quer deslizando por entre a enorme quantidade de rosas, quer dissimulando-se por entre as papoilas. E, no entanto, quantas vezes me dei ai trabalho de correr atrás dos cabritos, quantas vezes me cansei a perseguir vitelos. Porém, desta vez, tratava-se de alguém com uma agilidade incrível. Cansado, pois já sou velho, apoiei.me no cajado e, cuidando de que não fugisse, perguntei-lhe de que casa vizinha viera e o que colhera nos jardins dos outros. Não me respondeu, mas, colocando-se perto de mim, começou-se a rir muito delicadamente, atirando-me, ao mesmo tempo, bagas de mirto. Não sei como foi, mas o seu encanto fez desaparecer a minha cólera. Então pedi-lhe para me dar um abraço e para não ter medo; jurei-lhe, no meio das bagas de mirto, que o deixaria ir embora, que lhe ofereceria maçãs e romãs e até que lhe permitiria, doravante, colher os frutos e cortar as flores, na condição de me dar um beijo."
Longus de Lesbos, Dafnis e Cloé, II, trad. Sandra César (a partir da versão francesa), Queluz: Coisas de Ler Edições, 2002, pp. 42-43.
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