Monday, March 24, 2025

RUGAS

 


"Lua coloca a bacia no estrado, deita-se, enrola os braços ao pescoço da companheira, aninha-se e, em poucos segundos, está a dormir. Zé deriva à flor do sono durante muito tempo, mas acaba por mergulhar. Quando emerge, salta do leito e corre para o exterior. Abre a porta. Os beirais estão franjados de eslactites de caramelo que, de vez em quando, sob o efeito do vento e do peso, se desprendem com um retinir de lustres, e a paisagem é duma brancura estonteante, tudo branco e plano, excepto as rugas das paredes. As serras avolumam-se polidas e, nas encostas, sobressai a mancha escura dos carvalhos, só eles, pois as urzeiras e arbustos de menor porte estão completamente submersos. Gostofrio jaz no vale, bichos e homens retidos na toca pela neve. Belo e frio. Zé fecha a porta e vai para a cozinha."


Bento da Cruz, Filhas de Loth, Círculo de Leitores, 1993, p. 38. 

Sunday, March 23, 2025

AD IMAGINEM ET SIMILITUDINEM NOSTRAM

 




"41 (22). Ora, para que a própria unidade da majestade trina e do seu nome chegasse ao nosso conhecimento, assim o afirma essa mesma majestade invisível: Façamos o Homem à nossa imagem e semelhança. Deste modo ensinou o que devemos acreditar. Imprimiu a sua imagem no rosto do homem e disse: à nossa imagem. O conhecimento do Pai e do Filho apreende-se no rosto do homem, sendo o Pai e o Filho tal qual é a forma do seu rosto impressa no arquétipo humano feito de barro, com o qual somos modelados, para que o homem admirasse Deus a partir do próprio homem."



Potâmio de Lisboa, «Acerca da Substância», Escritos, tradução de José António Gonçalves e de Isidro Pereira Lamelas, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2020, p. 144.

Saturday, March 22, 2025

DA POESIA 2

 



"Não sabemos quais, mas procuramos
o lugar mais distante onde se veja
uma rosa contida, geométrica
do que as mãos se aproximam devagar

como se fosse nela que encontrassem
um equilíbrio único, perfeito
por ser interior. Era a presença
que há-de ficar agora dividida

ao longo das arestas, destas linhas
tocadas pelo vento, desfolhadas,
e assim uma outra rosa, a verdadeira,

sujeita-seao rigor, ao que era mínim
como esta florescência que termina
num espaço abstracto, o seu jardim."


Fernando Guimarães, "Paixão e Geometria", in Algumas Palavras - Poesia Reunida (1956-2008), Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 367.

Friday, March 21, 2025

DA POESIA 1

 



"As palavras são altas. Escutaste
o sentido mais íntimo que tinham
só para que de novo ali chegasse
o que já se tornou numa promessa

que se adivinha apenas e ficava
perdida nesta nave, no lugar
que estava destinado a ser o centro
dessas vozes. Talvez haja um motivo

último para entenderes como é maior
esta presença súbita que unia
a tudo o nosso espírito. Mais nada

se pode ouvir depois. E as outras vozes
ausentes é dali que se aproximam
para que exista agora o teu silêncio."


Fernando Guimarães, "Paixão e Geometria", in Algumas Palavras - Poesia Reunida (1956-2008), Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 375.

Thursday, March 20, 2025

TURBULÊNCIA

 



"Um anjo farinhento dissimula
o surdo ruído e a aflação das asas
na sua branca escuridão. Enquanto dura
e a que sucumbe a turbulência da água.

Um anjo farinhento que se embrenha
ao fundo dessa branca escuridão
e arrasta o espaço áspero da azenha 
para um côncavo susto de visão."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 193. 

Tuesday, March 18, 2025

COM O TRONCO AO CENTRO


 

"A ramificação aurífera das árvores
filtra a frança feliz de esbraseamento.
Até o crepúsculo ir extinguindo o ardor que sabe
a escuro conhecimento.
Depois, o vulto de escuridão só se abre 
à passagem da brisa. Que discrimina o alento
carregado de enxúndia, que perde, pelo que foi a tarde, 
a engurgitação de fundos elementos.
E aligeira-se então. Então a árvore
respira. E as raízes destrinçam o escurecimento
pronto à brancura que há-de, na ramagem, 
nimbar a noite. Com o tronco ao centro."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 166. 

Sunday, March 16, 2025

REGRESSO (NO ANIVERSÁRIO DE CAMILO CASTELO BRANCO)


 

"A história dos homens é uma teoria, e uma teoria nunca é trágica. Camilo nunca se explicou cabalmente a respeito desse casamento com Joaquina de França, talvez porque, como ele diz, «este facto de dizer a verdade não me pareceu muito do molde e talho para tapar as bocas do mundo». Do caso deve ter ele saído algo logrado e ferido, apesar das manhas tabeliónicas que lhe imputaram. «Uma infâmia», chama-lhe. Que parte teve nela, o seu silêncio não nos deixa margem para análise; ou podemos compreender aí que a ambição, a impaciência e o desfastio, aliados ao abrir daquela Primavera de 1842, deram ao jovem poeta razões de sobra para uma infâmia bem fundamentada. A Primavera, naquelas serras do Mezio e do Alvão, é um fenómeno que aparenta com a recriação do Mundo: a alma sofre-lhe o mistério, não sem lhe sacrificar as delicadezas que se retomam mais tarde com o andas das estações."


Agustina Bessa-Luís, Camilo, Génio e Figura, Lisboa: Casa das Letras, 2008, pp. 43-44.

Saturday, March 15, 2025

NO TEMPLO




"Na casa do Senhor já ouvi cânticos
         De mística toada,
Que em ondas de harmonia melancólica
Alagavam a nave, hoje deserta!
Que é desses, que eu ouvi, saudosos hinos
        De santa inspiração?
Esses que eu já senti n'alma infiltrar-me,
Em êxtases do céu, fervidas crenças
       Na íntima oração?"



Camilo Castelo Branco, Duas épocas da vida, 3.ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1906, p. 197.

Friday, March 14, 2025

TEMER

 



"E os homens esforçavam-se para regressar à terra, mas não conseguiam, porque o mar continuava a vir e a levantar-se mais contra eles. E eles clamaram ao Senhor e disseram: «Não, Senhor! Que não pereçamos por causa da vida deste homem. E não ponhas sobre nós sangue justo, porque Tu, Senhor, procedeste como querias.»
E pegaram em Jonas e atiraram-no ao mar; e o mar parou a sua agitação. E os homens temeram o Senhor com grande temor; e sacrificaram um sacrifício; e oraram orações."


Jon 1, 13-15, in Bíblia, Vol. III, trad. do grego de Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2017.

Wednesday, March 12, 2025

PERFEIÇÃO

 


"A perfeição sem falha de um São Francisco de Assis torna-o estranho. Não encontro nenhum ponto fraco que me permita aproximar-me e compreendê-lo. A sua perfeição é dificilmente perdoável. No entanto, acho que lhe encontrei uma desculpa. Quando já no fim da vida ficou praticamente cego, os médicos atribuíram o seu mal a uma única causa: o excesso de lágrimas."


Emil Cioran, Lágrimas e Santos, trad. Cristina Fernandes. Lisboa: Edições 70, 2022, p. 48. 

Tuesday, March 11, 2025

VIDA

 


"Assim como a arte procura apoio nos primitivos, também estes homens se voltam para épocas quase esquecidas e para os seus métodos, à procura de uma ajuda, pois eles ainda estão vivos nos povos que, do alto dos nossos conhecimentos, estamos habituados a olhar com piedade e desprezo."


Wassily Kandinsky, Do Espiritual na Arte, trad. Maria Helena Freitas, 7ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2006, pp. 38-39. 

Monday, March 10, 2025

ANIVERSÁRIO

 


"Tudo o que provém do amor puro é iluminado pelo brilho da verdade."


Simone Weil, A Pessoa e o Sagrado / A pessoa humana é sagrada?, trad. Rita Sousa Lopes, Lisboa: Guerra e Paz, 2022, p. 68. 

Sunday, March 9, 2025

RÉPROBO

 




" - Temos a liberdade de escolher.

- Sim, temos esse livre arbítrio não só durante a vida, como depois de mortos. E ele imagina, várias vezes, o caso de um réprobo que chega ao paraíso, ao céu; e então esse réprobo está, bom, entre os jardins do céu, está a ouvir a música celestial, está a conversar com anjos e tudo isso lhe parece horrível e fétido a ele, E, além disso, sofre; por exemplo, sente a luz como uma ferida."



Osvaldo Ferrari, Em diálogo com Jorge Luís Borges, vol. I, trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Círculo de Leitores, 2001, p. 203. 

Saturday, March 8, 2025

POR ENTRE AS CINTILAÇÕES DO FOGO

 


 

"Após algumas explicações pouco esclarecedoras sobre a relação entre o corpo e a alma, Honorius fala do Inferno, ou antes, dos infernos, pois segundo ele existem dois. O inferno superior é a parte inferior do mundo terrestre que está cheia de penas: um calor insuportável, muito frio, a fome, a sede, dores diversas, quer corporais, como as que provêm de contusões, quer espirituais, como as que decorrem do medo ou da vergonha. O inferno inferior é um lugar espiritual onde há um fogo inextinguível e onde se sofrem nove espécies de penas especiais: um fogo que queima e não alumia e um frio insuportável, vermes imortais, especialmente serpentes e dragões, um cheiro horrível, ruídos inquietantes como martelos batendo em ferro, trevas espessas, uma mistura confusa de todos os pecadores, a visão horrível dos demónios e dos dragões visíveis por entre as cintilações do fogo, o clamor lastimoso dos choros e dos insultos e por fim anéis de fogo apertando os corpos dos condenados."

 

Jacques Le Goff, O Nascimento do Purgatório, trad. Maria Fernanda Gonçalves de Azevedo, 2.ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 168. 

Friday, March 7, 2025

IRRUPÇÃO

 


"Este é o rio. A água, esse poderoso material translúcido, um dos quatro mistérios elementais, pode aqui ser vista na sua origem. Tal como todos os grandes mistérios, é tão simples que me assusta. Irrompe da rocha e flui. Durante incontáveis anos, irrompe da rocha e flui. Não faz nada, absolutamente nada, a não ser ela própria."


Nan Shepherd, A Montanha Viva, trad. Jorge Melícias, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 74. 

REVELAR


"A névoa, que esconde, pode também revelar. Por causa dela, é possível distinguir os declives e as ravinas naquilo que parecia ser uma simples colina: uma nova profundidade é acrescentada à  paisagem. E numa longa linha de rochas escarpadas, como a grande muralha meridional do Lago Einich, cada contraforte destaca-se como se de recortes rendilhados de van Dyck  se tratasse. Véus de fina névoa movendo-se à deriva ao longo dessa grande superfície do lago - parecem iridescentes enquanto flutuam entre o sol e a rocha vermelha."


Nan Shepherd, A Montanha Viva, trad. Jorge Melícias, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 97. 

Wednesday, March 5, 2025

CINZAS

 



"Esta chuva nos consola
do tempo que nos devora.


Devolve o pranto acrescido
de uma esperança na terra
que pisamos e adotamos,
terra em que somos sofridos,
desesperamos e amamos,
perseveramos vivendo
(antes mortos que vividos)
e, bem mais, sobrevivendo.

A chuva nos elabora
perfeita flora de antigo."



Maria Ângela Alvim, Superfície - Toda Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 105.

AS HORAS BREVES

 



"Intangível assim
quem lhe pressente
nessa beleza, além, 
asas mais leves?

Presença, serafim
que transparente
aqui pousas e sustém
as horas breves.

Mas sempre sem sinal
- o anjo se elide
em tudo - e nesse raio

que no ar seu cristal
ora reincide
a luz é só desmaio."



Maria Ângela Alvim, Superfície - Toda Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 81. 

Tuesday, March 4, 2025

ENTROIDO

 



"Quanto ao Entrudo, é festa de rascões, porque lhes celebram as vésperas com muita tanhada e sambarcos, com que perseguem os pobres dos saloios, tão soberbos por lhe[s] fazerem uma travessura, como se tomaram Mazagão de uma penada.
A festa do dia avulta mais neles que na outra gente, porque como trazem a fome em viveiro, todo o ano estão de fios secos para aquela conjunção, e cortam por todo o género de mantimento que se lhe[s] oferece, até ver[em] se podem desquitar-se do passado"



Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Obra Poética e em Prosa, ed. Maria Luísa Linhares de Deus, Porto: Campo das Letras, 2007, pp. 233-234.

A CHEGADA DA NEVE

 


"A chegada da neve provém muitas vezes de um céu de um azul resplandecente, com batalhões cerrados de cúmulos brancos e sólidos situados a pouca altitude do horizonte. Um deles enfuna até sair das fileiras, e da sua borda finos pedaços de neve, tão delgados que dificilmente damos conta da sua presença, espiralam delicadamente no céu azul. E, em poucos minutos, o ar fica carregado de flocos."


Nan Shepherd, A Montanha Viva, trad. Jorge Melícias, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 87. 

Friday, February 28, 2025

PERSONAE

 




" - É necessário que de alguma maneira seja real.
- Sim, porque acredito que se sentirmos uma personagem como uma fieira de palavras, essa personagem não foi criada feliz ou acertadamente. Por exemplo, tratando-se de um romance, devemos acreditar que as personagens vivem para lá daquilo que o autor nos disse delas. Por exemplo, se pensarmos numa personagem qualquer, uma personagem de um romance ou de um drama, temos de pensar que essa personagem - nos momentos em que não a vemos - dorme, sonha, cumpre diversas funções. Porque, senão, seria totalmente irreal para nós."


Osvaldo Ferrari, Em diálogo com Jorge Luís Borges, trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Círculo de Leitores, 2001, p. 85.

Thursday, February 27, 2025

EM MEU ENTENDER

 



"Plus la vision est intérieure, plus is faut, à mon avis, s'appuyer sur la Nature.
Oeuvre d'art est volontaire plus qu'on ne croit. Néanmoins, un monstre de volonté n'arrivera jamais, en art, exactemente où il prétendait arriver."


Georges Rouault, Sur L' Art et sur la Vie, Paris: Éditions Denoël, 1971, p. 55.

Wednesday, February 26, 2025

ARREPENDIMENTO


 

" - Você é cruel, senhor João - disse o académico.
- Não sou cruel - disse o ferrador - , o fidalgo está enganado comigo; é que, diz lá o ditado, morrer por morrer, morra o meu pai, que é mais velho. Tanto faz matar um como dois. Quando se está com a mão na massa, tanto faz amassar um alqueire como três. As obras devem ser acabadas, ou então é melhor não meter a gente nelas. Agora levo a minha consciência sossegada. A justiça que prove, se quiser; mas não há-de ser porque lho digam aqueles dois que eu mandei de presente ao diabo.
Simão teve um instante de horror do homicida, e de arrependimento de se ter ligado com tal homem."


Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, Lisboa: Ulisseia, 1991, cap. VI, p. 112. 

Tuesday, February 25, 2025

RENÚNCIA

 


"«A liberdade de que falo: a permissão, já que Deus em nada determinou o mundo e nada fez para o seu Como, de fundá-lo e ordená-lo de novo. A permissão para poder dissolver todas as formas, as formas morais primeiro, para que todas as outras se possam dissolver também. O aniquilamento de todas as crenças, de todo o tipo de crença, para aniquilar todos os motivos de luta. A renúncia a todas as perspectivas tradicionais, a todo o estado de coisas tradicional: aos estados, às igrejas, às organizações, meios de autoridade, dinheiro, armas, educação.»"


Ingeborg Bachmann, "Trinta Anos", in Trinta Anos, trad. Leonor Sá, Lisboa: Relógio D´'Água, 1988, p. 56. 

SABOR

 


"Durante algum tempo não soubera já no que acreditar, se é que não pensava mesmo ser uma vergonha acreditar nalguma coisa. Agora começava a acreditar em si próprio, quando fazia alguma coisa ou se expressava. Começa a ter confiança em si mesmo. Confia também nas coisas que não precisam de uma prova, nos poros da sua pele, no sabor salgado do mar, no ar cheirando a frutos, e em tudo o que tem algo de particular."


Ingeborg Bachmann, "Trinta Anos", in Trinta Anos, trad. Leonor Sá, Lisboa: Relógio D´'Água, 1988, pp. 60-61. 

Sunday, February 23, 2025

VISÃO PROFUNDA

 


 

"Mas como começou tudo isto? Não se iniciou já há anos esta submissão, este viver sob a tutela de redes de inimizades e amizades, pouco tempo depois de se ter deixado enredar pelas querelas da sociedade? Não criou ele desde aí, no seu desalento, uma vida dupla, uma vida múltipla, para poder ainda viver? Não está ele a enganar todos e cada um e ainda mais a si próprio? Boas proveniências tinham-lhe facultado pressupostos para a amabilidade, para a confiança. Um desejo nostálgico louvável tinha-o feito ansiar de um modo bárbaro pela desigualdade, por uma razão suprema e por uma visão profunda e totalizante. Para além disto, apenas adquirira a experiência de que o indivíduo é brutalizado pelos homens, que eles próprios também o são, que há momentos em que podemos ficar cinzentos de tão ofendidos - e que todos são ofendidos até à morte dos outros. Que todos têm medo da morte, embora só nela se possam salvar da monstruosa ofensa que é a vida."


Ingeborg Bachmann, "Trinta Anos", in Trinta Anos, trad. Leonor Sá, Lisboa: Relógio D´'Água, 1988, p. 27.  

Saturday, February 22, 2025

A MATÉRIA POR DENTRO

 



"da confluência dos diagramas económicos
na paisagem, há o arresto da luz
entre cada atmosfera, a meio caminho

a decomposição: rés do piso
da carruagem que atravessa a paisagem
até não ter mais caminho. tem mais vista

dos pobres a matéria por dentro. apagam
entre cada arfo de putrefação
e somem ódio, entre vistas
já principiámos a enlouquecer."


Óscar Possacos, curva, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2024, p. 46.

Friday, February 21, 2025

DESENHO

 


"As crianças não têm futuro. Têm medo do mundo inteiro. Dele não fazem uma ideia precisa, só conhecem um lado de cá e um lado de lá, fronteiras que se deixam desenhar com um pau de giz. Para o inferno saltam ao pé coxinho, para o céu saltam com os pés juntos."


Ingeborg Bachmann, "Juventude numa cidade austríaca", in Trinta Anos, trad. Leonor Sá, Lisboa: Relógio D´'Água, 1988, p. 12. 

Thursday, February 20, 2025

TOCAR

 




"O velho frade ergueu os olhos ao céu, balbuciou algumas palavras e, agarrando no seu cajado, caminhou até ao penedo. Chegado ao local olhou para a enorme pedra, olhou para os trabalhadores e para o céu e colocando a mão sobre ela disse sorrindo:
- Para esta a força de um velho basta.
Empurrando-a com a mão e tocando-a com o cajado foi-a deslocando e guiando até ao local escolhido como quem guia um cevado."


António Patrício, Lendas de S. Gonçalo e de Amarante, 3.ª edição, Amarante: Paróquia de S. Gonçalo, 2022, pp. 38-39. 

Wednesday, February 19, 2025

CRIAÇÃO

 


"De resto, estava em voga esta prática; os artistas procuravam lugares solitários, pelos montes, pelas aldeias tristes e paradas, onde se ouvissem os pássaros, se criassem galinhas, se morresse de frio e de tédio."

 


Mónica Baldaque, Sapatos de Corda - Agustina, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, p. 99. 

Tuesday, February 18, 2025

OS REMOTOS CAMINHOS

 



"Tange um sino sem badalo
e memória já não há.
Há inverno das paredes, 
há cama, terra de adeuses,
e há silêncio nevando
em câimbra insensorial.
Nos mares da noite, em volta, 
os peixes do sono esquecem
os seus remotos caminhos.
A água prendeu o peixe, 
a sombra gelou no ar, 
sombra saída de mim, 
retardatária e dormente.
Não resta mais que um contorno
de branca ausência."


Maria Ângela Alvim, Superfície - Toda Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 100.

Sunday, February 16, 2025

OS QUE MORREM VIDA EM MEIO

 



"Sempre distante amor e perto anseio
e triste descambar do adeus e a ida
em promessa que apenas prometida
tanto levou do ser que o fez alheio.

De outra morte morrer, opõe receio?
Morre um morto após si, já em seguida
à perda ao largo de alma tão perdida?
Mortos são os que morrem vida em meio.

São os vivos de amor, que amor esquece,
e, súbito, na morte amadurece
antes de tudo mais que vai morrendo.

Feridos numa dor que está vivendo
no arrastar em gemido e em passo tardo,
ter sido, mais que ser, terrível fardo."



Maria Ângela Alvim, Superfície - Toda Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 87.

CORRE TEMPO

 



"Corre tempo, que te alcança
a minha veloz lembrança

Corre tempo
corre tempo
corre tempo até o fim

que eu mesma passei por mim"



Maria Ângela Alvim, Superfície - Toda Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 78.

Saturday, February 15, 2025

PRESSENTIDO

 


"Desliza-me entre os dedos o pensamento, e nada é, nem muito nítido, nem provado. Apenas pressentido e esperado. Agoniza um tempo, e outro o vem cobrir, cheio de sombras e de assombro. Ainda podemos voltar atrás a visitar memórias, mas vão acabar por perder-se num imenso longínquo, sem gravidade nem luz. Quer sejam as memórias de família, quer sejam as memórias de amigos ou de antigos lugares visitados e civilizações."


Mónica Baldaque, Sapatos de Corda - Agustina, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, p. 11. 

Friday, February 14, 2025

UM AMOR CATIVO

 



"Procure ao largo de alma o lenitivo
para este mal da vida, sem promessa.
O corpo vive alheio a se ter vivo
quando fome maior nos arremessa.

Temos todos, enfim, um amor cativo
que tudo pode e inflama e tudo cessa
quando liberto em sim vê seu motivo
a este amor dê tudo e nada peça.

Cante em sua voz o rito e os dissabores
do tempo e acontecer mais abstraindo
aspecto transitório e fáceis cores.

Só amor, enquanto é, nos anistia:
sem ele, seres, coisas, verso vindo
são refúgios do medo sem poesia."



Maria Ângela Alvim, Superfície - Toda Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 68.

Thursday, February 13, 2025

IMPERMANÊNCIA



"não há lugar permanente na roda da matéria, 
muito por exemplo, nas nuvens desliza a forma,
chove. nos diques o excesso de partículas transborda.

a desordem a rebordar nas fundas
camadas das raízes, a aparição das vistas
e os recipientes dos morfemas
apascentam a sede à terra. à boca da terra."



Óscar Possacos, curva, Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2024, p. 72. 
 

Tuesday, February 11, 2025

A SINCRONIA EXATA

 



"ao que parece deus
talvez não seja essa força ilimitada
que se supõe
e afasta os mares e faz girar os planetas
sobre eixos invisíveis apontados para o vácuo
talvez não organize tudo no espaço
regendo a sincronia exata
de um móbile interminável e dinâmico
que se ergue e desaba
se ergue e desaparece
isso deve ser outra coisa
talvez ele esteja mais perto
como num ângulo agudo
através do qual se pode encarar
a linha da rua, de manhãzinha
e ver uma réstia lilás que ultrapassa
os galpões e as alamedas
sobre as telhas sobre o beiral de gesso
e toca delicadamente a vidraça de metal
que por poucos segundos
faísca
e é imediatamente absorvida
pelo alarido dos carros lojas flanelinhas"


Ana Estaregui, Dança Para Cavalos seguido de Coração de Boi, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 156.

Monday, February 10, 2025

DAS SEREIAS

 



"I.
das sereias que se partem em duas
só quero esta que repousa aqui na cama agora
fria e quase desacordada.

II.
Passar o pente fino na curva cega
do ésse espatifado
esse fiapo escorregadio e leve
que submerge antes mesmo
de ser avistado no mar

III.
fosse pelo bom senso
continuaríamos de bruços
diante delas que são mínimas
olhando tudo do rodapé
mas não, empacamos de pé
esperamos pelo momento exato
de enxergarmos apenas metade
dos acontecimentos"



Ana Estaregui, Dança Para Cavalos seguido de Coração de Boi, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 134.

Sunday, February 9, 2025

PROFETA EM SUA CASA

 


"Como herança genética devo muito à região de Amarante. São lugares de misteriosa convivência, onde tudo se aprende e pouco se condena. Há um sentimento comunitário de perdão e de culpa que se entendem um com o outro. Tudo acontecia como se tivesse sido precedido por um aviso. Eu creio que se liam os profetas na minha terra. Cada um é um profeta na sua casa e ninguém acha e ninguém acha estranho porque, mais ou menos, todos são profetas. Ninguém se metia a oráculo, era-o e falava como tal e o vizinho respondia-lhe da mesma maneira. Usam a metáfora como um instrumento de trabalho ou de lazer: a enxada ou o pião. Dantes percebia-se isso melhor, hoje já não."

 

  O Livro de Agustina Bessa-Luís, Lisboa: Guerra & Paz, Editores, 2007, pp. 39-40.
  

Saturday, February 8, 2025

O PEITO DE QUALQUER BICHO

 



"Em breve seremos aves
a coluna maleável os ossos leves
sairemos secos da água
penas e bicos impermeáveis
em direção às árvores
saberemos - por intuição
por qual direção seguir
em qual esquina dobrar
a esta altura teremos conquistado
a bússola originária
esta que habita o peito de qualquer bicho
fungo ou planta orientada pelo verão
em breve seremos aves
os olhos certos de caçar
de cima avistamos ruas e toldos
as embarcações que chegam à noite
do alto das copas das palmeiras"


Ana Estaregui, Dança Para Cavalos, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 23.

Friday, February 7, 2025

ISTO NÃO PODE CONTINUAR ASSIM

 



"Não interessa tomar partido
pois a verdade a verdade
não existe. Todo o condenado
aspira à eternidade.

Depois os outros odeiam
querem circo
e a sua querida terapia.

Nestes assuntos há sempre
um drama entre a personagem
o palco a forca e os aplausos."


Isabel de Sá, O real arrasa tudo, Porto: Porto Editora, 2019, p. 22.

Thursday, February 6, 2025

O POETA É SÓ PALEIO

 



"O poeta é só paleio
o leitor deleita-se
com o exercício estético.
Trata-se de uma excelente discussão.
Raça credo política
ou género
deixam de ter importância. 

Imune à contaminação
o leitor é só paleio
e o poeta deleita-se
perante o objecto.

Ambos ficam serenos
a instituição intocável
não há sobressaltos.
Foram ao templo
e a palavra do oráculo
aquietou o espírito.

Neste caso
os poemas não
nomeiam coisas horríveis
entranhas. A vida é
assim. O ser humano
também é horrível.
Nenhum credo 
tornará o homem melhor."



Isabel de Sá, O real arrasa tudo, Porto: Porto Editora, 2019, pp. 17-18.

Wednesday, February 5, 2025

VISONHO

 


"Lípsio - A imitação, para louvável, quer-se feita com grande destreza, porque o simples séquito de um só, que vai adiante, pertence aos animais e não aos homens. Quem imita, melhore, acrescente, diminua e toque; ou não seja tido por visonho."


D. Francisco Manuel de Melo, Apólogos Dialogais, vol. II - Hospital das Letras, Braga-Coimbra: Angelus Novus, 1999, p. 66. 

DEVIRTIMENTO

 


"Lípsio - Contudo não disse mal Bocalino por mais que sempre diga mal. A rezão é clara, porque os dois pólos em que se funda a poesia, que são o amor e ociosidade, nenhum deles se pode achar verdadeiramente em os varões religiosos, em quem a mortificação se opõe ao afecto e a disciplina ao ócio. Logo, como a poesia seja um estudo de muitos estudos, o qual de todo arrebate a mente de seus professores, jamais se compadece perfeitamente naqueles que,  exercitando ciências mais altas, se reservam talvez a esse acidental devirtimento."


D. Francisco Manuel de Melo, Apólogos Dialogais, vol. II - Hospital das Letras, Braga-Coimbra: Angelus Novus, 1999, p. 49. 

Sunday, February 2, 2025

TEMPORIS ARS MEDICINA FERE EST

 


"A arte de usar o tempo é já meia cura. Servindo no tempo certo, é útil
o vinho, mas servido fora de tempo é perigoso.
Pior que isso, ateias o vício e atiça-lo, quando o proíbes,
se no tempo certo lhe não puseres travão."



Ovídio, Remédios contra o Amor, trad. Carlos Ascenso André, Lisboa: Quetzal, 2024, vv. 131-134, p. 57. 

Saturday, February 1, 2025

VOAR ENTRE GLÓRIAS

 



"Lembra-te? Foi longa a noite...
Longa aos outros pareceu:
A mim voou-me entre glórias,
Como os instantes do céu.
Lembra-te? - O resto da noite,
D'esses olhos eloquentes
Que expressões tam vehementes
Sahiram de amor, de fé!
.....................................................

Vivi um século inteiro
N'essa noite de ventura,
Vivi na ilusão, no engano;
Mas êrro tam lisongeiro
Oh, porque inda não dura!

....................................................."




Almeida Garrett, Flores sem Fructo, in Lírica Completa, Lisboa: Arcádia, 1963, p. 308.

Thursday, January 30, 2025

TREMEM OS CERROS

 




"Tremem os cerros
os favos entumescem;
às meias horas cai
da sombra a sombra.

E a gorda luz
encosta-me à parede."


Luiza Neto Jorge, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 268.

ÁRVORES INTENSAS

 


"Árvores intensas Casas de trapo
Chilreia a chuva Coxeia a cama
Frutos votivos Cal calejada
         Ponte romana"


Luiza Neto Jorge, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 261.

Monday, January 27, 2025

ESBOROAM


 
"Ao debater-se, os músculos
remexem a folhagem
onde todas as formas de vida
se agitam, desenhando círculos
que depois se esboroam
espalhando em redor
os esporos por onde
circula o ciclo da vida."


Fernando Guerreiro, (quase) Anjos, Guimarães: Grisú, 2014, p. 12.

Thursday, January 23, 2025

ÀS PORTAS DE DAMASCO

 



"Esperei tanto o corpo daquele
que o meu coração ama
que ele acabou naturalmente por
se misturar ao meu cheiro com
o cheiro das romãs e das uvas
ao primeiro arrepio do outono
e ser aquele fugaz clarão que
me traz novo sangue e nova pele para
correr o mundo à sua procura
nas madrugadas em que os inimigos
varrem as casas e incendeiam as cidades

e só por isso sei que uma noite
hei-de tombar às portas de damasco
e ouvir em todos os rumores de ocultas águas
a voz que me há-de devolver purificada
ao corpo daquele que o meu coração ama"


Alice Vieira, O Que Dói às Aves, 2.ª ed., Alfragide: Caminho, 2014, p. 65.