"Como poderia ser de outro modo, no dionisismo? No panteão grego, Dioniso não representa o divino, pois constitui um domínio de realidade separado do mundo, oposto à incoerência e à inconstância da vida humana. Ocupa aí uma posição ambígua, como é próprio do seu estatuto: mais semi-deus do que deus, mesmo que ele queira ser deus plenamente e por inteiro. Até no Olimpo Dioniso encarna a figura do Outro. Se a sua função fosse «mística», ele arrancaria o homem ao universo do devir, do sensível, da multiplicidade para o levar a transpor esse limiar para além do qual se penetra na esfera do imutável, do permanente, de uno, do que é sempre o mesmo. Não é esse o seu papel. Ele não nos arranca à vida terrestre, por uma técnica de ascese e de renúncia. Ele elimina as fronteiras entre o divino e o humano, o humano e o bestial, o aquém e o além. Faz com que o que estava isolado, separado, comunique. A sua irrupção, sob forma de transe e de possessão regulamentadas, é, na natureza, no grupo social, em cada indivíduo humano, uma subversão da ordem que, através de todo um jogo de prodígios, de fantasmagorias, de ilusões, por um esvaziamento desconcertante do quotidiano, atira para o alto, numa confraternidade idílica de todas as criaturas, a comunhão feliz de uma idade do ouro subitamente reencontrada, ou, inversamente, para quem o recusa e o nega, para o fundo, para a confusão caótica de um horror terrífico."
Jean-Pierre Vernant, Figuras, Ídolos, Máscaras, trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema, 1993, pp. 177-178.
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